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Kim Gordon – Object of Projection

“Foi durante uma sessão de perguntas e respostas que a artista descreveu a circunstância em que se encontrava: “to be existing as an object of projection” (existir como um objeto de projeção).”[1]

Não deixa de ser peculiar a caracterização que Kim Gordon faz do seu lugar enquanto artista, como um objeto de projeção, através de uma exposição onde os elementos não coincidentemente se baseiam maioritariamente em instalações de vídeo e projeções. Assumindo-se precisamente como protagonista do que aqui apresenta, Gordon direciona a câmara para si própria, a sua música, os seus percursos e o próprio ato performativo.

A exposição Object of Projection da artista Kim Gordon, patente no gnration, povoa todo o espaço ocupante, distribuindo-se pela galeria um, pela galeria zero, pela sala zero e pelo pátio interior. Na galeria zero, ao entrar, encontramos dois objetos onde a figura circular, sedimentada num espelho em Wreath Mirror e no chão em Black Glitter Circle, indica um sentido de percurso, de lugar, um indício de uma presença. Suplementando estes elementos, através da peça Proposal for a Dance, que oferece num papel ao espetador indicações de um ato performativo não apresentado diretamente, a latência da figura da artista central a toda a exposição estrutura uma presença através do rasto e da influência material deixada. Este preâmbulo não-figurativo concretiza-se na divisão seguinte onde, complementando o texto, encontramos uma instalação composta por 3 projeções de vídeo que nos mostram a artista num concerto frenético com acompanhantes.

O trabalho de Kim Gordon e o som que ouvimos nesta exposição interrogam imediatamente a contextualização da sua produção musical, enquadrando o seu trabalho sonoro numa produção de noise que materializa a transgressão da barreira entre o musical e o não-musical, entre a experiência artística e a não-artística. Como define Paul Hegarty: “O noise é negativo: é indesejado, outro, não é algo ordenado. É definido negativamente – ou seja, pelo que não é (não é um som aceitável, não é música, não é válido, não é uma mensagem ou um significado), mas é também uma negatividade. Por outras palavras, não existe independentemente, pois existe apenas em relação ao que não é. Por sua vez, ajuda a estruturar e a definir o seu oposto (o mundo do sentido, da lei, da regulamentação, da bondade, da beleza, etc).”[2]

A incorporação da produção musical num ato de transgressão, como um constante questionamento da natureza do musical, encontra ecos no feminismo enquanto valorização do que é definido apenas negativamente. Se a música de Kim Gordon procura promover uma constante reavaliação da nossa perceção musical, ao longo da exposição, esta assume-se enquanto objeto de projeção, oferecendo ao visitante a oportunidade de encontrar o seu lado privado. Lado este que, ao invés de se caracterizar por uma música em abstrato, se enquadra na transformação material por ela efetuada. É precisamente neste sentido que, dando continuidade aos elementos já descritos, encontramos no pátio interior grandes fotografias de quartos de hotel marcadas digitalmente, delineando percursos que se assemelham a movimentos invisíveis trespassados por esses espaços. A interação constante por parte de Kim Gordon, que leva sempre consigo a sua guitarra e a utiliza como interferência reiterada, é igualmente evidente na sala zero, que apresenta uma peça em vídeo na qual a artista passeia e interage sonoramente com os lugares por onde passa, maioritariamente grandes arranha-céus ou locais associados a prosperidade e riqueza. A produção musical de Kim Gordon, representativa desse movimento de transgressão, parece literalmente invadir e contaminar os espaços e objetos. Este movimento, ao permitir uma abertura do musical perante o não-musical, descentra o agenciamento artístico perante a exclusividade humana, devolvendo-o à máquina, ao não-humano.

Este desafio à pureza e translucidez do agenciamento humano, através do ruído, do aleatório, do maquínico, encontra um cruzamento com a descentralização do homem enquanto figura definidora da sociedade patriarcal. Sadie Plant escreve que “como as mulheres, quaisquer máquinas pensantes são admitidas sob a compreensão que têm o dever de honrar e obedecer aos membros da espécie aos quais foram escravizadas: os membros, os masculinos, a família do homem. Mas processos de auto-organização proliferam, conexões são continuamente feitas, e a complexidade torna-se incrementemente complexa.”[3] O ato de retirar ao agenciamento não-humano o enclausuramento da escravidão humano liberta o ruído à sua qualidade de ruído. É este movimento que parece aparecer no trabalho de Kim Gordon não só associado à sua produção musical/sonora, mas igualmente à forma como a sua presença enquanto objeto de projeção projeta o conflito entre a mulher e a sua dependência ontológica da figura do homem. Amy Ireland escreve: “Como Dionísio, ela aproxima-se sempre de fora. A condição da sua entrada no jogo é o confinamento mudo ao termo negativo na dialética da identidade que reproduz o Homem como mestre da morte, do desejo, da natureza, da história e da sua própria origem. Para este fim, a mulher é definida antecipadamente como falta. (…) Máquinas, mulheres – demónios, se quiserem – alinham-se ao lado negro do ecrã: o excedente inumano de um circuito negro.”[4]

Esta relação torna-se particularmente visível na última grande instalação vídeo na galeria um, onde vemos um filme que, referenciando de forma clara Jeanne Dielman de Chantal Akerman, nos apresenta Kim em longos planos estáticos a efetuar as rotinas domésticas sempre com uma guitarra ao pescoço, que constantemente se debate e interage com o meio envolvente, produzindo ruídos. Oferecendo um legado ao filme de Chantal Akerman e ao seu potencial feminista, a invasão dos espaços pelo noise de Gordon aqui não é proposital, impõe-se perante a sua vida diária, enquanto mulher ainda sujeita à sociedade em que opera. Como refere Plant, “O falo e o olho representam-se um ao outro, dando prioridade à luz, à visão e uma fuga das matérias sombrias e húmidas do feminino. (…) Enquanto a mulher não tem nada para ser visto onde o homem pensa que o membro deve estar. Só um buraco, uma sombra, uma ferida, um ‘sexo que não é um’.”[5]. Um conflito constante entre trabalho e vida doméstica, música e não-música, homem e mulher. Resta à mulher fazer barulho.

A exposição está patente no gnration até dia 5 de abril.

 

 

[1] Lawrence English na folha de sala da exposição

[2] Hegarty, P (2007). Noise/Music. p. 5. Tradução livre

[3] Plant, S. (2000). On the Matrix: Cyberfeminist Simulations, p. 329. Tradução livre

[4] Ireland, A. (2017). Black Circuit: Code for the Numbers to Come, p. 2-3, 4. Tradução livre

[5] Plant, S. (2000). On the Matrix: Cyberfeminist Simulations, p. 327. Tradução livre

Mariana Machado (2000) nasceu no Porto e estudou Cinema na Escola das Artes - Universidade Católica Portuguesa. Neste momento, frequenta o Mestrado em Artes Digitais e Sonoras, também na Escola das Artes. É artista e investigadora, interessando-se acima de tudo por manifestações que articulem a imagem em movimento num contexto entre o cinema e a arte contemporânea, assim como pelas potencialidades artísticas de novas tecnologias e suas articulações com outras materialidades.

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