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Pedra e Vento, de Tiago Baptista e Mariana Gomes

Algo não está bem.

Há aqui um desvio conceptual e social que surpreende.

A primeira obra é o estágio que antecede a inauguração. A expectativa é trabalhada, moldada e depois deitada ao chão.

É pintura, certo? Os artistas são pintores, é o que vem no currículo deles. Portanto, só pode ser uma exposição de pintura.

E não é.

 

De facto, esse é o grande espanto inicial de Pedra e Vento, um projeto de Tiago Baptista e Mariana Gomes, no Buraco, que nos dá a ver a prática artística como um exercício matérico e afetivo, mesmo que isso implique abandonar a prática pictórica que lhes é característica.

Tem-se, então, dois momentos: o da jogada bem-humorada, que tem algo de mais profundo do que um mero acontecimento de expectativas frustradas; e o que se apresenta diante de nós –  uma mesa comprida, repleta de pequenos objetos de argila esculpidos pelos artistas.

A piada inicial denuncia um modo de estar perante a obra de arte que é muitas vezes, se não mesmo sempre, moldado por ideias preconcebidas – dados apriorísticos que se compõem e que completam frequentemente o que vemos, o que sentimos, o que vivemos. A experiência da arte é mediada, deste modo, por uma condição cultural e pelo modo como entendemos o portefólio e a bagagem artística deste ou daquele artista.

Assim, torna-se aqui imperativo reajustar o olhar e o espírito, que toldam esse dispositivo ótico, pensante, que vê para lá do que é factual e especula em abundância. Porque o que temos à nossa frente, realmente, não são as pinturas vibrantes e metanarrativas de Baptista, nem o experimentalismo abstrato e gestual, vincadamente plástico, de Gomes. E se este projeto se propõe como uma obra a pares, talvez o trabalho sobre uma outra matéria configure uma oportuna e ajuizada forma de ambos se encontrarem e juntos acharem um modo de trabalhar que permita o estreitamento de uma amizade que nasceu ou se consolidou pelo profundo gosto pela pintura.

Sobre uma mesa e pano azul, repousam pequenos objetos em argila. São miniaturas de cogumelos ou outros fungos, relógios, diabretes, estruturas primitivas, artefactos utilitários e outros de difícil leitura, mas de exegese poética – o berlinde de cristal, que repousa no centro de uma massa esbranquiçada e que parece formar uma ténue ondulação. O olhar deambula por entre aquele enfiamento de pequenos nadas ou, em alternativa, pequenos mundos. Será isto o que se entende por topofilia – um termo usado por Gaston Bachelard em A Poética do Espaço para descrever a estranha sensação de estarmos perante uma constrição tal dos planos espaciais que faz a imaginação fervilhar e viver com intensidade um lugar, um quarto, uma sala? Que dizia ele? Que a “miniatura é um dos refúgios da grandeza”[1]?

Fazemo-nos pequenos, invocamos toda a imaginação da infância para percorrer esta mesa de pequenas coisas; convocamos para a assembleia de minudências de Baptista e Gomes as fantasias escondidas dos contos e das fábulas, da História efabulada, pois que vislumbramos um demónio e um Adamastor, que se fazem de miniatura para alargarem o mundo.

Sim. Algo de profundamente enternecedor anima estas miniaturas. Falam a uma infância perdida, encerrada nos artifícios culturais do tempo e da biologia. São objetos familiares, como se tivessem sido moldados pelas mãos de muitas infâncias, de todas as que nos precederam e sucederam. É cómico e melancólico – melancómico, por certo. Recordamos os pechisbeques que guardamos em casa: um presente vagamente kitsch, uma medalha de bom comportamento, um globo de cristal trazido de não-sei-de-onde, uma recordação de África, do Ultramar (aventada para dentro de uma gaveta, porque agora dá vergonha e é de evitar falar-se no assunto). Do mesmo modo que resgatam a memória, cristalizam-na. São testemunhos de “pedra e vento”, como uma briza que passeia junto às rochas do pensamento. Os murmúrios da memória, que atiçam a imaginação e se fazem representação.

Simultaneamente, e não obstante a riqueza das peças, do sgraffitto e dos desenhos gravados na argila, esta é uma exposição que vive muito do processo e das imagens que entrevemos dos artistas a trabalhar. É um produto laboral, de objetos começados por um e terminados por outro – uma forma de produzir a pares, que noutras ocasiões podia ser encarado com alguma licenciosidade: Baptista e Gomes parecem escarnecer da solidão do ato criativo. Há aqui um rejubilar na subversão e na entrega despudorada aos limites, fracassos, valências e potências de ambos. Essa mutualidade é a força conceptual por detrás da cortina, por de baixo do pano azul – os pilares que sustentam o devaneio servido sobre a mesa, descomprometido, em tese, mas sério, na prática. Um devaneio bruxuleante, enfim, como a luz do espaço, que termina na parede e faz render a imagem de um pôr-do-sol sumido, porventura tirado de um sonho ou de um improviso de última hora.

Entre a intimidade dos artistas e a intimidade das memórias que guardamos dos objetos mundanos, Pedra e Vento representa um exercício raro sobre a leitura sempre expansiva da arte, e de como esta consegue construir uma aura mística que interpela não só aos sentidos, mas também aos sedimentos imagéticos depositados dentro de cada um. Nunca vimos Baptista e Gomes a trabalhar, mas conseguimos imaginá-los ali, junto à mesa, discutindo a vida ou falando, como Gomes confidenciou, entre mãos cheias de argila, a pintura que os une – Courbet, com certeza, mas também todos os outros: os contemporâneos de agora e os contemporâneos de ontem.

Pedra e Vento, de Tiago Baptista e Mariana Gomes, está patente no Buraco, em Lisboa, até 29 de março.

 

[1] Bachelard. G. (1994). The Poetics of Space. Boston: Beacon Press. P. 155.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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