Viagem de Estudo à Quinta do Quetzal: uma “exposição de afetos”, de Pedro Canoilas
O ponto de encontro foi a Estação do Oriente, onde o grupo aguardava sob as folhas de bananeira, naquele que é o desenho de Calatrava para as palas do terminal dos autocarros. Pouco passava das nove e meia, quando a carreira partiu com trajeto Lisboa – Vidigueira. O motivo: uma conversa entre Pedro Canoilas e os artistas Fernão Cruz, Gonçalo Barreiros, José Pedro Croft, Luís Rocha e Sara Mealha, em torno da exposição Through the Eyes of the Makers.
A manhã tinha acordado coberta por neblina, mas o céu logo abriu a sul, revelando o sol luminoso do Alentejo. Próximos de Cuba, uma rua estreita antecipou um conflito entre a diferença de escalas, a do autocarro urbano e a do modesto casario caiado. Mas foi na aldeia de Vila de Frades, já no sopé da Quinta do Quetzal, que o autocarro onde seguíamos, se tornou a atração turística popular. Um vaivém desacelerado de manobras, entrecruzadas com uma inversão de marcha e gestos mudos através dos vidros, ora dentro ora fora, fizeram a delícia dos moradores naquele domingo. Não passou tudo de uma performance, afinal os tripulantes eram, na sua maioria, uma turma de jovens artistas emergentes. Acabaríamos por chegar ao destino já próximos do meio-dia.
Sobre a Quinta do Quetzal, a herdade não é apenas um centro de produção vinícola, como também um espaço dedicado à arte contemporânea. Desde 2016 que Aveline de Bruin[1] procura promover a mostra da coleção Bruin-Heijn no meio do Alentejo, bem no enclave entre Beja e Évora. Muitos palmos de pé-direito separam um piso aberto sobre a paisagem da vinha, e o espaço semienterrado da galeria. São cerca de 400 m2 de planta livre que acolhe até dia 30 de março, Through the Eyes of the Makers, uma exposição com a curadoria de Pedro Canoilas em diálogo com o espaço de Aveline de Brun.
O título, em tradução literal – através do olhar do instalador, leia-se equipa montagem – é revelador de uma perspetiva íntima e emocional sobre as obras e a sua relação com os artistas, que Canoilas acompanha em montagens e que bem conhece, bem como, com aquele espaço que muitas vezes reconfigurou. A curadoria não partiu, portanto, de uma narrativa, um tema, ou uma ideia semi-rígida, mas antes foi um processo de construção fluído, quase em linha de montagem, onde as peças se foram encaixando e dialogando entre si, como Pedro Canoilas com os artistas – assim o fizeram notar os artistas, na conversa que se seguiu à visita livre e ao beberete.
Focando-nos no conteúdo da exposição, a peça de José Pedro Croft (Untitled, 1998) faz-se notar na entrada da nave expositiva. Explora o anamorfismo, desafiando a perceção (dimensional) mensurável: das arestas, das superfícies ou do perímetro. Já num dos cantos opostos da sala, Carlos Nogueira evoca a fluidez de um rio, que entra casa adentro. Desenhos tridimensionais a carvão do curso da água e da forma do fogo que aquece uma casa (Desenho de rio 1980/2022 e Desenho de casa aberta para cima, 2010/2017). Um fluxo de rio, que já por ali não passa ou corre, mas é alimentado por uma mangueira amarela, peça de Gonçalo Barreiros (Untitled, 2018). Ao centro da galeria, a instalação de Fernão Cruz, erguida como uma prisão conceptual, oscila entre a inocência do nascimento e a fragilidade de um desmaio – o adormecimento de um pai. Reenactment of a father (2022-2024) é uma soleira entre o real e o imaginário de Cruz. À porta, um molho de cenouras é um engodo para coelhos atrás do alimento. Vamos down the rabbit hole, arriscando cair na armadilha, por sorte, o isco é também batente de pavimento, embora não se sintam correntes de ar.
Canoilas trouxe também humor e ironia, aliás presente em vários diálogos entre as peças. Mas é evidenciado com João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira em Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre (2017), Martîm e os seus Paraísos Urbanos II e III (2022-2023) e a dupla Jonh Wood e Paul Harrison com Semi Automatic Painting Machine (2014). Esta última, uma projeção de 19 minutos e 36 segundos de curiosidade no universo CMYK, dentro de uma estufa de pintura, onde a luz é artificial (talvez como a cor). Uma sátira divertida e minimalista à sociedade contemporânea presa no loop criativo e repetitivo de uma rotina quotidiana – um “filme” que talvez Jacques Tati gostasse de ter feito. Com cor, também Sara Mealha encheu o background da conversa. Fresh (2024) é uma tela horizontal, pintada de fresco (ou um fresco?), onde se subverte a lógica entre quem é quem neste jogo de significados, o montador, o curador, a artista e a pintora.
Não poderíamos terminar este texto sem o abrandamento visual proporcionado pela black box de Luís Rocha – uma instalação de vídeo em dois canais sobre uma pintura de parede com nuances. A projeção é uma viagem de metro ou comboio, ou até de carro (é rápida), com paragens, ou referências (permitam-me a ousadia) a Kazimir Malevich e Mark Rothko[2]. Cabe por lá também a Igreja da Luz, de Tadao Ando ou por geografias mais próximas, caberia esta projeção na Capela do Monte de Álvaro Siza, sobre a cal pigmentada. Analogias e referências à parte, Sem Título (2024), de Luís Rocha, é sem dúvida um dos destaques.
Seguindo a toada religiosa, terminámos o dia subindo ao monte, a este que se via da janela panorâmica. No cume, entre vinhas adormecidas pelo inverno, três pinheiros e três colunas ecoam um doce-timbre-doce. A instalação sonora de três canais, da artista escocesa Susan Philipsz, Tomorrow’s Sky (2019), conjurou a “ave do paraíso”, encerrando o dia e silenciando a multidão no caminho de regresso a Lisboa.
Through the Eyes of the Makers conta com obras de Carla Cabanas, Catarina Dias, Carlos Nogueira, Carlos Noronha Feio, Daniel Mattar, Elizabeth Prentis, Fernão Cruz, Fábio Colaço, Gonçalo Barreiros, Inês Zenha, João Cutileiro, João Pedro Vale + Nuno Alexandre Ferreira, José Pedro Croft, Luís Rocha, Margarida Bolsa, Margarida Lagarto, Martîm, Sara Mealha, Sofia Castro e Wood and Harrisson, bem como uma coleção de múltiplos do Carpe Diem Arte e Pesquisa. A exposição pode ser visitada até dia 30 de março.
[1] Aveline de Bruin, filha do casal de colecionadores Cees e Inge de Bruin-Heijn, é desde 2008 a responsável pela coleção Bruin-Heijn, uma coleção internacional de arte contemporânea sediada nos Países Baixos.
[2] Lembramos também a célebre sequência “stargate” de 2001: Odisseia no Espaço de Stanley Kubrick – revisitada recentemente (homenageada) por Coralie Fargeat em A Substância.