Para além do Espaço e do Tempo – No Sétimo Continente, no Colégio das Artes Universidade de Coimbra
No âmbito do projeto Em Liberdade – apoiado pela Rede Portuguesa de Arte Contemporânea e desenvolvido em parceria com três entidades de diferentes zonas do país – MIRA FORUM (Porto), Air 351 (Cascais) e Lugar do Desenho (Gondomar) – o Colégio das Artes da Universidade de Coimbra apresenta a exposição Para além do Espaço e do Tempo – No Sétimo Continente. Com curadoria de António Olaio e Paulo Mendes, reunindo um grupo significativo de obras de cerca de 30 artistas e performers portugueses, viajamos ao longo das três salas da Galeria do Colégio das Artes por esse sétimo continente que se impõe simultaneamente como espaço de resistência e de reinvenção. Num convite à reflexão sobre o momento presente e especulando futuros possíveis, o projeto curatorial e expositivo revela-nos a complexidade e pluralidade de propostas poéticas e posicionamentos criativos que definem a arte contemporânea portuguesa, numa associação entre nomes de artistas que se destacam pela sua importância histórica – Álvaro Lapa; António Areal, Ana Hatherly; Ernesto de Sousa; Fernando Lemos; Jorge Pinheiro; Jorge Martins e Mário Cesariny – com outros mais recentes, como Bárbara Fonte, Fabrizio Matos, Miguel Palma, Sara e André e Tiago Madaleno.
Espaço simultaneamente imaginário e real, entramos no novo continente idealizado pelos curadores e concebido pela diversidade de obras que o compõe e que, como num jogo, criam diferentes relações, sinergias e camadas de significação que procuramos desvendar. Não obstante a transversalidade do conjunto de peças e de artistas apresentados, a nível estilístico e geracional, há um sentido de comunhão, de contemporaneidade e de emergência que os unifica, proporcionado pela subjetividade das suas visões distópicas. Partindo do nosso lugar, do atual e inquietante tempo social e político, evocando a arte como forma de o ultrapassar, a mostra transporta-nos, através de ficções activadas por realidades complexas e um mapeamento de mitologias individuais[1], para um lugar intemporal e sem fronteiras, que se estende além do tempo e do espaço.
A mão petrificada que toca à campainha, dá o toque de entrada à exposição, uma provocação que nos é oferecida por Fernão Cruz ao confrontar-nos com o desmembramento de Dor fantasma (2022). O título da escultura evoca a dor que se sente numa parte do corpo que foi amputada e cuja ausência se torna presente. É a memória da perda que nos bate à porta, numa convocação da ideia de tempo, de uma ação em suspensão que se eterniza e nos recebe, conduzindo-nos para além do tempo, para o sétimo continente.
Peças de chão e de parede habitam o primeiro espaço expositivo, mergulhando-nos num universo conceptual, estético e visual no qual predominam a variedade de mediums – esculturas; instalações; desenhos e pinturas – padrões, cores e materiais. O mistério do desconhecido conduz-nos às obras de Mané Pacheco que, em destaque no espaço, nos mergulham no imaginário fantástico da artista habitado por criaturas híbridas, seres irreais acéfalos e de três pernas que nos seduzem. Imóveis nas suas poses elegantes, nascidas do encontro do natural com o artificial – cabos coaxiais industriais, chifre de veado ou espinhos de horney locust – o conjunto de criaturas evoca os Tripods, máquinas alienígenas que invadem o planeta Terra, descritos por H. G. Wells em A guerra dos mundos. A importância do mistério, que envolve o universo futurista e fantástico da artista, revela-se de igual modo nos desenhos a carvão e na escultura de grandes dimensões de Fabrizio Matos que nos transportam para uma nostalgia do clássico que o artista revisita e recria. Evocativo da memória e das construções da Antiguidade, observamos as imagens fantasmáticas de templos e ruínas dominadas pela sombra e penumbra, às quais se acresce a presença de Coluna (2021), obra que se impõe pela verticalidade e que se eleva quase até ao teto. Composta por pneus – os mesmos que nos desenhos recriam templos – esta escultura suscita uma sensação de instabilidade, evocativa dos tempos atuais e de um futuro imprevisível que contrasta com a natureza e função das colunas enquanto estruturas fundacionais.
A relevância atribuída aos materiais, aos elementos e à sua releitura é também visível no Museu da Gentrificação – Expositor #3, (2024), de Nikolai Nekh. Combinando diferentes elementos – fotografia, estrado e andaime – a obra insere-se no trabalho de documentação e conceptualização que o artista tem desenvolvido sobre materiais que se produzem e circulam no processo de gentrificação. Num lugar entre uma escultura e um equipamento de exposição, apontando para a fluidez da arte e da utilidade, observamos qual pódio que se impõe no espaço, o andaime de escala reduzida. A escultura revela, à semelhança do estrado de cama reformulado e em exibição na parede, a redefinição funcional dos objetos domésticos coletados pelo artista – na apropriação pós-Duchampiana em que trabalha – assim como a importância que atribui à execução manual.
Ainda na primeira sala, destaque para as composições fotográficas de Fernando Lemos, cuja abordagem surrealista oferece uma rutura com a realidade convencional, mergulhando-nos num universo imaginativo e provocatório, relembrando-nos da importância da fantasia, do irracional na experiência humana, e da criação de novas leituras e interpretações necessárias no mundo atual.
Acompanhados pela composição sonora de António Caramelo I´m afraid I can’t do that (2025), observamos as diferentes obras que habitam o espaço e confrontamo-nos com frases e interrogações que, como slogans, pontuam as paredes: The Age of Impotence; Transhumanism; Prehostoric Utopia; Ecological Utopianism; Labour as non capital; Is There Any World to Come? It is easier to imagine the end of the world than to imagine the end of capitalism.
Do ambiente imersivo e provocatório do primeiro momento expositivo, seguimos para a segunda sala onde as obras em exibição criam uma justaposição de tempos históricos, geografias, territórios e ficções, afirmando no seu conjunto a existência de um lugar de resistência, de reivindicação e liberdade. Essa liberdade conquistada, ideias de viagem, de movimento e de fuga em direção a um destino e a um futuro, materializam-se na instalação Uma casa na praia (2024), de Tiago Madaleno. Num jogo entre palavras e desenhos de cariz gráfico de linhas orgânicas e geométricas, os desenhos-esculturas ao longo das paredes repetem a frase um som que chega tarde a uma imagem, numa alusão ao filme e à imagem em movimento que ecoa no rolo de acetato e de tinta magnética que compõem a escultura de uma espreguiçadeira. Noção de liberdade que reencontramos, qual floresta de ferro, em Torre Bela (2025) de Nuno Nunes Ferreira, obra de arquivo de ferramentas agrícolas que, inspirada na ocupação da propriedade Torre Bela em 1975, traduz uma vontade de mudança e de resistência. Próximas e num diálogo interessante entre geografias e materialidades diferentes, a tradição cabo-verdiana e matriarcal da cerâmica é-nos reveladas nas peças Lundum e Abraço II (2023), de Jacira da Conceição, em figuras semi-humanas, nascidas do barro maleável, que se abraçam num gesto de insubmissão nesse novo território que se estende para além do tempo e do espaço.
Na parede do fundo, pintada em tons de azul, a contemplação do sol é-nos oferecida por Hugo de Almeida Pinho em Solarpunk (the new utopians), 2021-25. Refletindo sobre a ideia de capitalismo solar e as suas ligações com a terra, a energia e a tecnologia deixa-nos seduzir pelo jogo de iluminação que, projetado na parede, surge como a luz emanada pelo Sol. Observamos no chão a peça de ferro onde o astro-rei é figurado e pintado e cujo reflexo conduz o nosso olhar aos pequenos satélites que orbitam na parede. Próxima desta peça, encontramos a tela azul celeste Untitled (world if there was no Land), 2023, de Fábio Colaço, sobre a parede pintada da mesma cor, numa possível alusão ao mar que nos dá conta de um futuro suspenso em tempos de realismo capitalista.
I am useless to the culture but god loves me… é a inscrição que lemos antes de entrarmos no último espaço do sétimo continente, onde a luz intermitente da obra de néon de Fábio Colaço cativa a nossa atenção. Impondo-se como declaração persistente e luminosa, de cariz irónico e subversivo, Who killed the world, (2024) transporta-nos, em diálogo com as restantes obras do espaço, para um lugar de incerteza e resistência. A este propósito, destaquemos a ironia presente na máquina de guerra de Miguel Palma, Paz Blindada (2025), cujo título contraditório nos faz sorrir ao observarmos a bandeira branca que ostenta; o humor negro de Sobrevivência (2023) de Fernão Cruz, e a estranheza e resistência do busto febril em Strategy of the pyretic encloser I (1994-95) de Miguel Ângelo Marques.
Utopias que se projetam e materializam em Coimbra no sétimo continente, numa proposta contra a lassidão, a impotência e a abstinência ideológica, através dos gestos revolucionários dos artistas e das suas obras que conjeturam, entre realidade e ficção, futuros alternativos.
A exposição pode ser visitada até dia 4 de abril.
[1] MENDES, Paulo – Sétimo Continente, Relatório Crítico. Folha de sala da exposição, 2025.