Sobre o Ritual da Serpente, na Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira 24
Segundo o Calendário Chinês, 2025 é o Ano da Serpente, o sexto animal na sequência do Horóscopo que se repete a cada 12 anos. 2025 é também o ano que acolhe parte do programa curatorial da Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira (BF24), intitulado SERPENTE INFINITA. Construída em torno de uma leitura especulativa do texto A Lecture on Serpent Ritual, de Aby Warburg, a Bienal parece reevocar a simbologia milenar da serpente e, ao mesmo tempo, recuperar as narrativas mágico-explicativas que cruzaram tempos e civilizações distantes, atribuindo um qualquer sentido – ainda que provisório – à existência humana.
Em A Lecture on Serpent Ritual, Aby Warburg apresenta um conjunto de reflexões a partir da observação das práticas ritualísticas dos Índios Hopi, no Novo México. Este texto veio anunciar a sobrevivência de uma cultura pagã primitiva, num país onde a técnica se tornara já uma arma ao serviço do intelecto. Mas o que implica transpor este texto para o domínio da fotografia? Este exercício de releitura remete-nos necessariamente para uma recuperação do pensamento de Aby Warburg. Interessado na formulação de uma história da cultura sedimentada na articulação de diversos campos do saber, Warburg utilizava a fotografia como uma ferramenta metodológica para a constituição desta nova disciplina. O seu Atlas Mnemosyne, desenvolvido entre 1925 e 1929, é disto o principal exemplo. Trata-se de um extenso arquivo disposto em painéis, onde se estabelecem relações de afinidade entre imagens de proveniências históricas, estéticas e culturais distintas. A lógica do Atlas Mnemosyne parece, neste sentido, contaminar a construção deste programa curatorial. Como um atlas disperso por vários espaços da cidade, a BF24 apresenta um conjunto de imagens fotográficas envoltas numa complexa tessitura que não cessa de possibilitar novas constelações de sentido.
As imagens que encontramos são imagens fixas e em movimento, provenientes de diferentes artistas, contextos e universos plásticos. São, sobretudo, imagens que não produzem sentido individualmente, mas enquanto conjunto, mosaico que se transforma em síntese porque iniciado um infindável jogo de associações – ora próximas, ora quase vertiginosas. Tal como Delfim Sardo escreve em O exercício Experimental da Liberdade, a agregação destes diferentes planos fotográficos não interessa enquanto acumulação heteróclita. A sua relevância reside na possibilidade de construção de um sentido de unidade, que, neste caso, poderá ser atribuído à serpente, uma figura que atravessa invariavelmente todos os espaços expositivos da Bienal.
A intervenção de Paulo Arraiano na Fachada do Museu do Neo-Realismo mostra uma serpente cuja pele se move sobre o seu corpo estático. Apresentado em loop, este vídeo esclarece a existência de movimento no que está aparentemente imóvel, um processo de transformação que é, simultaneamente, cíclico e infinito. Por sua vez, as peças de Carla Cabanas, apresentadas na sua exposição individual na Galeria Paulo Nunes, constituem corpos serpeantes que espreitam dos céus, luminosos, suspensos e contorcidos sobre si próprios. Também Inv. 903, de Daniela Ângelo, revela uma serpente iluminada apenas por um foco de luz amarela. Como um artefacto redescoberto numa sala escura, esta peça – que inicia o nosso percurso na exposição coletiva patente na Fábrica das Palavras – parece sintetizar o propósito deste programa curatorial, desarquivar e inventariar as narrativas construídas em redor desta figura mitológica.
Note-se, no entanto, que a representação da serpente vai assumindo contornos distintos. Por vezes, encontramos somente vestígios de um corpo ausente. Vemos as suas vértebras em Halo e as peles largadas por um processo de ecdise, em Snake Skin, Ritual e Cabeça de Klimt. Outras vezes, a sua representação adquire já uma dimensão performativa. A mais inábil candura, de Bárbara Fontes, surge precisamente neste sentido. Apresentada na exposição patente no Celeiro da Patriarcal, esta instalação-vídeo mostra uma mulher aprisionada no corpo de uma serpente. Resta, então, questionar: até que ponto não seremos também um animal de muda? Que peles são essas que, à semelhança de uma serpente, vestimos e largamos?
A Bienal vai tecendo possíveis planos de resposta, nunca definitivos, nunca inteiramente conclusivos. As peles que vestimos, sugeridas por sucessivos jogos de presenças e ausências, revelações e encobrimentos, estão presentes na série Turva, de Elisa Azevedo, onde as roupas molhadas sobre o corpo se tornam translúcidas. Testemunho de uma intimidade envolvida numa atmosfera turva, quase onírica, estas fotografias representam essas peles que, quando vestidas, permitem ocultar um qualquer estado de vulnerabilidade. Esta componente simbólica da pele destaca-se também em Flesh to White to Black to Flesh, um filme de Bruce Naumam, onde um homem cobre o seu rosto com tinta branca e preta. Esta sequência – quase ritualística – aproxima-se da nossa preparação para a vida social. Afinal, todos os dias pintamos uma máscara: branca, preta, sempre diferente. Quando regressamos a casa, despimos a máscara que nos cobria o rosto: estamos back to flesh. E este é num ciclo que se repete infinitamente, não implicasse a sociabilização um tanto de fingimento e de distanciamento – mudanças de pele, portanto.
Mas mais do que uma mudança de pele, a serpente parece anunciar um movimento “dos tempos, do cosmos, do pathos, das águas das chuvas, das colheitas, da ecdise e das imagens que entram umas pelas outras”[1]. Entre estes corpos serpenteantes, encontramos um movimento escrito nas linhas da mão, em Serpentina de Adriana Molder; nos astros luminosos que orbitam em Time Machine, de Igor Jesus; e nos trajetos errantes traçados por Inês Moura em Somos terra, chão e caminho. Há qualquer coisa que aqui se situa no domínio do indizível, num campo de tensão entre o visível e o invisível, o documento e a ficção. Talvez porque não há uma verdade a desvendar na imagem fotográfica. Porque é precisamente no “intervalo, no que não está lá, no salto e na falta que o discurso narrativo em torno das imagens se pode construir”.[2]
Atente-se, por exemplo, a peça Retracing & Spooling, de Tris Vonna Michel. Composta por 65 slides fotográficos, esta obra apresenta fragmentos dispersos e enigmáticos, livros com papéis esquecidos no seu interior, uma abóbora em estado de putrefação, reentrâncias tomadas de assalto pela vegetação que teima crescer. As imagens que vemos são vestígios de uma presença fantasmagórica que aí sabemos inscrita, mas que não podemos desvelar. As peças Míope e Máscara de Igor Jesus situam-se neste mesmo campo da não-representação. Fotografadas através de uma lente esculpida, revelam objetos que se tornam corpos estranhos, distorcidos, corrompidos pela miopia e pela máscara que os encobre, turvando-nos a visão.
Como sugerido no texto que acompanha o programa curatorial, estas fotografias correspondem a partes de uma serpente infinita, a quem “de cada vez que se lhe tirava uma vértebra não fazia falta nenhuma. […] Quem quisesse levar-lhe um bocado para casa podia pô-lo na parede e contemplar um fragmento da serpente infinita.”[3] Não há forma de se saber onde está a cabeça desta serpente. Por isso, vemos somente fragmentos de qualquer outra coisa que não podemos nunca ver por inteiro. Visitar a BF24 é, pois, regressar à Caverna, caminhar pela escuridão diante de aparições relâmpago. Fotografias luminosas que nos guiam na sombra, constituindo um corpo de imagens que permite desbravar um imagético do inconsciente coletivo: o da serpente, mas sobretudo o do ritual, que serve precisamente para curar esta ferida inata – a restrição do Homem ao fragmento, à vertebra, à pele caída.
Nos desenhos dos Índios Hopi, recuperados por Aby Warburg em A Lecture on Serpent Ritual, os relâmpagos são representados como serpentes, mensageiros enviados que regressavam sobre a forma de uma tempestade. As serpentes seriam uma explicação para as forças coercivas da natureza que os indígenas não podiam ainda compreender. Alienada entre pixéis e explicações racionais que se sobrepõem à terra, tal como em Meanwhile, At Home, de Paulo Arraiano, a civilização tecnológica afasta-se desta causalidade mágico-fantástica, confiando cegamente o seu porvir a narrativas de progresso que, como se sabe, nem sempre traduzem um avanço. O mito, o símbolo e o ritual são, assim, relegados a um estado de primitivismo que se entende distante do Ocidente. É certo que a idade tecnológica não precisa da serpente para explicar e controlar a luz, mas será que o Homem perdeu, de facto, os seus medos primitivos? Não será o medo mais primitivo a impossibilidade de conhecer? A emancipação das explicações mitológicas não trouxe ainda – se a trará – uma resposta para o problema da existência. E, por isso, torna-se pertinente (re)evocar a serpente, imagem relâmpago. Fazer persistir estas narrativas mágicas e, acima de tudo, utilizar a fotografia como uma ferramenta de especulação na esperança de nela se encontrar uma possível resposta.
Com curadoria de Ana Rito, as exposições integradas na Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira podem ser visitadas até dia 23 de março na Fábrica das Palavras, no Celeiro da Patriarcal, na Galeria Paulo Nunes e no Núcleo Museológico do Mártir Santo. Foram também realizadas intervenções na Fachada do Museu Municipal e do Museu do Neo-Realismo.
Mais informações sobre o programa curatorial da BF24 poderão ser consultadas no website da Bienal e no artigo A Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira 24, escrito por Maria Inês Augusto para a Umbigo em 2024.
[1] No texto de apresentação do Programa Curatorial da BF24, escrito por Ana Rito.
[2] Em O exercício experimental da liberdade, de Delfim Sardo, p. 231.
[3] Em 351 Tisanas, de Ana Hatherly (Lisboa: Quimera, 1997), pp. 44–45.