Emguarda, de Edgar Massul
Emguarda é o título da terceira exposição patente ao público no Centro de Arte Contemporânea da Fortaleza de Sagres, desde que foi inaugurado, em novembro de 2022, com uma mostra de trabalhos de Manuel Baptista (nome a vários títulos inaugural no contexto da arte contemporânea da e na região do Algarve). Seguiu-se-lhe, em setembro do ano passado, Desenho, Construção e Vertigem, de Xana, e agora, sob a designação daquele neologismo, exibem-se as obras de Edgar Massul (n. 1963). Não é casual que as três exposições no ainda novo centro expositivo tenham em comum os nomes curatoriais de Mirian Tavares e Pedro Cabral Santo. E que estes, por sua vez, partilhem com Alexandre Barata, a docência de disciplinas no curso de Artes Visuais da Universidade do Algarve, cuja dinâmica tem tido repercussões indiscutíveis na qualidade do que se mostra e na constância com que se mostra arte na região. A arte contemporânea tem tido, de facto, uma atenção particularmente ativa nos últimos anos, e as relações entre a universidade e a região (municípios, entidades privadas e públicas) muito têm contribuído para que isso aconteça.
Na profusão e no caos que é hoje o mundo da arte, o que significa ser artista? No mundo caótico que é hoje um emaranhado de conflitos e falsidades, o que significa ser? (E ainda, o que implica escrever palavras sobre uma exposição de objetos visuais?) Quando a arte instiga questões como estas, é porque já entrega, de alguma maneira, as respostas.
Começo pelo final, pelo que vem entre parênteses: fixar palavras acerca de quadros, de peças sobretudo visuais (mas também texturais e de luz) pode passar por um entendimento do que se vê, tanto quanto de uma proposta para quem, além da que escreve, verá ou viu. É uma recolha e uma oferenda, uma dádiva e um roubo. Pode somar alguma coisa ao visto, mas não necessariamente. No caso de emguarda, somarei aqui informações que o próprio artista me foi dando, numa visita em que me guiou por uma galeria que em Sagres se iluminava de um céu sem nuvens e de um teto quase transparente (as dificuldades de expor num lugar em que a luz escapa ao controlo de artistas e curadores corresponde, em igual medida, à felicidade de se ter salas com uma iluminação privilegiada pelo capricho da natureza – coisa rara, coisa bela). Mas espero conseguir oferecer pistas para uma visão das obras de Edgar Massul que dispense esse outro privilégio, o da visita guiada pelo artista. Desde logo, seria importante conseguir fazê-lo porque as várias peças expostas não estão identificadas – nem junto delas, nem no texto de apresentação (assinado por Mirian Tavares).
Esta exposição pode ser vista “sem rede”, o que não significa a indispensabilidade dessa rede de informações e pode mesmo constituir uma manifestação contra o excesso de informação. Se tentar imaginar um visitante incauto e desconhecedor, sobra muito de sensação e de experiência do lugar e do modo como os vários quadros, esculturas, desenhos, formas, se alinham na superfície das várias paredes daquela sala única. O título, então, ganha a força de um ascendente: “revela-nos uma intenção e um gesto – o de reconhecer que as suas obras permanecem porque estão guardadas, abrigadas por colecionadores, coleções, amigos”, escreve Mirian Tavares na folha de sala, clarificando que as várias peças ali expostas provêm de coleções individuais ou institucionais. Emguarda significa, simultaneamente, à guarda de, que é o traço comum às peças apresentadas, e numa atitude de sentinela, de vigília – como se o artista, que reclamou a reunião temporária das obras que se encontram dispersas pelas mãos de várias entidades e indivíduos, pretendesse sublinhar como posição de domínio a posição autoral das obras. (Nisso transformando o gesto na conformação da distância que, fora do tempo da exposição, se interpõe entre ele mesmo e a sua criação.) A palavra, inexistente, do título teima em se inscrever.
A não identificação das peças instaura um sentido de unificação; recusa o isolamento de cada uma, quer no aceitar da convocação, que todas testemunham, quer na secundarização que parecem propor para a sua existência individualizada: pressupõe um entendimento orgânico da obra, vista como a totalidade dos seus membros. Mas, do mesmo modo, relembra o vício da informação: na ausência de dados (datas de criação, identidade do colecionador, materiais), é o aqui e o agora, a plasticidade de cada superfície que ganha, como que a compensar o vazio informativo: a arte vale por si.
Na gentil visita que me ofereceu, Massul falava das coleções (Carmona e Costa, EDP, entre outras), dos nomes de colecionadores, da origem das peças, das exposições onde tinham sido mostradas – mas, de vez em quando, propositadamente ou não, recuava: “Não, não foi aí”, e corrigia um dado, um nome, uma data. Com isso, leio, o que fazia era devolver à arte a sua centralidade, fundando-a em laços de cumplicidade e de amizade (vários dos que guardam as obras expostas são amigos do artista; as peças simbolizam também essas relações). A exposição constitui-se como criação de elos de proximidade, de afinidade, de vizinhança entre as peças e aquilo que representam, uma reunião temporária do que, muito pela amizade, se foi dispersando.
Na profusão e no caos que é hoje o mundo da arte, retomo agora a pergunta, o que significa ser artista? Certamente não será – apenas – a inscrição num sistema de lucro em que cada peça se completa pelo pequenino círculo autocolante colorido, ou pela lista de títulos, formatos, materiais e preços (que Gianfranco Sanguinetti denuncia no logro que entende ser a arte contemporânea[1]). Em emguarda, significa sobretudo assumir-se como fulcro de uma rede de cumplicidades e afinidades e propor para elas símbolos através da arte.
“O espírito começa onde a penumbra / se desentranha do fundo / do objecto.”[2] Os versos de Fernando Echevarría parecem descrever muitos dos quadros desta exposição – sobretudo aqueles em que a matéria de lama (palavra formada com as mesmas palavras que “alma”) revela passagens de tempo, cursos de água, depósitos de areia como se fossem sedimentações da vida. Estas peças, de cor castanha sobretudo em fundo claro, surgem como que emanadas do grande painel que se vê sobre a quase totalidade da parede do extremo da sala oposto ao da entrada, e cuja perceção só se totaliza quando o visitante se desloca até ele (as paredes interpostas no meio do espaço incitam a um jogo de escondidas com a luz e com a arte). As areias, fico a saber, vêm de lugares diferentes: das margens do Tejo, do Douro ou da Ria Formosa – são também marcas de vida, de momentos, de enraizamentos e desenraizamentos. A textura dos quadros pode resultar da passagem do tempo ou do acaso com que nas lamas se descobriram vestígios de plantas ou conchas. A água dos rios são metáfora antiga para o curso da vida, subentende-se nas imagens expostas, assim como no material de que se fazem as esculturas que a exposição acolhe – as quais estabelecem com a sala e a luz vinda do teto desenhos de um percurso, guiando a direção do olhar.
A exposição poderá ser visitada até dia 30 de março, todos os dias entre as 9h e as 17h30.
[1] SANGUINETTI, Gianfranco, O Logro da Arte Contemporânea. Lisboa: Barco Bêbado, 2022.
[2] ECHEVARRÍA, Fernando, Uso de Penumbra. Porto, Edições Afrontamento, 1995, p. 21.