De noite ao relento pela primeira vez
O título da exposição de Ana Manso e André Romão, na galeria Appleton, em Lisboa, Espiral, declara o movimento a partir do qual a relação entre a pintura de Ana Manso e a escultura de André Romão se torna comunicante.[1] Feito o reconhecimento da espiral como estrutura dialogante— segundo a qual a distância é invariavelmente reversível em proximidade, a partir da definição de um centro — entre pintura (na parede) e escultura (no espaço por onde circulamos na sala) — somos forçados a atestar a existência de um dentro e de um fora. As telas de Ana Manso estão expostas ao longo de quatro paredes. As paredes são tingidas de linhas cinzentas, disformes, a simular o começo de uma pintura que se deseja total até à opacidade ou até à pretensa (é claro, fantasiosa) brancura de uma unidade, ou sendo, afinal, tão-só a representação de vibrações, que, a julgar pela presença de sinos e guizos nas peças de Romão, seriam vibrações sonoras. A pintura da parede, com efeito, tanto pode sugerir incompletude quanto a fidelidade possível da tradução (tão lacunar quanto franca e apaixonada) de um ambiente. De qualquer forma, o certo é que as pinturas abstractas e coloridas de Ana Manso interrompem a cinza — mais ou menos translúcida, mais ou menos cerrada — do padrão desigual nas paredes, para proporem paisagens várias, as quais, em contraste cromático com o fundo da parede, impressionam pela ilusão de velocidade. Encontramo-nos como se no interior de uma locomotiva. As paredes são o fumo que obstrui a paisagem, não obstante ser esse o sinal visual do motor fundamental ao movimento, além de ser a marca tonal responsável, por contraste, pelo esplendor garrido dos enquadramentos pictóricos. Ao nosso lado, pela mão de André Romão, homens, mulheres dormem — o género não é certo; são, o que importa, gente. Uma raposa dorme aos pés de um dos dois corpos estendidos em estrados. Não é claro, como o sexo destes viajantes adormecidos, se a raposa é parte de um ser híbrido — meio humano, meio animal —, o despontar de uma nova figura mitológica, o retorno da narrativa, se se trata, por outro lado, de um companheiro de viagem. A peça propõe a ambiguidade entre o ser e o estar: o ser dois ou o estar um com outro. Trata-se de inscrever a comunidade como condição basilar da viagem, da travessia de paisagens diversas, de fazer o reconhecimento de um corpo num espaço que não pode ser sempre o seu, na exacta medida em que estar é sempre, de algum modo, habitar uma outra origem. A viagem servirá aqui de metáfora metonímica para a vida, já que é pelo contexto de uma presença provisória — a da viagem — que se afirma a necessidade da comunidade, da atenção sobre o outro que forma o nosso olhar e, consequentemente, aquilo a que aderimos como o diverso a partir da actuação do que (nos) é familiar.
Descemos as escadas em direcção à cave da galeria. Adentramos na escuridão. Numa sala, a instalação luminosa de António Poppe, Rest in Paper, funciona como candeia na noite cerrada. Não como um farol: não há sinais de costa, nem de mar. Não como lanterna: o rastro de luz é preciso, cortante, laminar, e não hesitante como gente que procura um rumo. Continuando a metáfora da viagem, eis o ponto em que o corpo estanca, o sangue segue bombeando. Procuramos, a todo o custo, o faro que faça, por fim, do instinto um modo de adormecer os sentidos: estar em casa. Um holofote incide sobre uma tela deitada a sustentar uma estrutura triangular, em tenda — ou o desenho de uma casa —, com o mesmo padrão: a reprodução do manuscrito de um talismã turco. Por dentro dessa primeira casa (mas não será já figurativamente, neste jogo de matrioscas, casa herdeira do próprio espaço da galeria que pontualmente nos acolhe?) a versão em miniatura da instalação. Ambas as peças, no abismo de escala que as disjunta, como irmãs de uma mesma espécie, são situadas pelo corte de um mesmo feixe de luz. Como a ponta de uma lança, o manuscrito aberto convidando à leitura. No extremo do golpe, no ponto em que a tensão da mira se desfaz no cruzamento e na interpenetração da matéria, um livro, um texto, um tecido a ser descortinado. Um idioma deslocado, a escrita reduzida (ou ampliada?) à condição de corpo. A um corpo não se pede, naturalmente, que seja compreendido, mas que com ele se dance: coreografia táctil, sonora, verbal, etc. Rest in Paper cruza duas línguas: o turco e o inglês. A estranheza linguística entre a peça — que contém escrita, evidentemente — e o título é essencialmente visual. A maioria dos espectadores dominarão o inglês que, no contexto desta exposição, é menos inglês do que a língua franca — o que, desde logo, situa a exposição num tempo específico, elevando-a à condição de evento —, o idioma que tenta construir uma base mínima de entendimento, que supere distâncias geográfico-culturais. O mesmo não se poderá dizer do turco, que só uma fracção reduzida dos visitantes da exposição, senão mesmo ninguém, dominará. Assim, se não conhecemos o turco, para nós a inscrição daquelas frases adquire substancialmente o valor do desenho, cujo sentido é tanto uma suspeita quanto uma tentação. As palavras do título são necessária e igualmente subsumidas ao valor do desenho pela relação de estranhamento que encerram com as imagens de escrita na instalação propriamente dita. Resta a franqueza e o amor de um entendimento aproximativo, recíproco, crente e encantatório.
É uma casa luminosa, uma tela deitada, o manuscrito no lugar de um corpo que, em vigília, sai cá para fora para olhar o céu estrelado, no meio do deserto (onde, aliás, se está sempre no meio) ou num campo de onde se avista um comboio de Hikmet. É uma casa, esse abrigo provisório — como a língua — a dar-nos uma temperatura, um cheiro. À força de o querermos, ligando imaginação, pele e fantasia. É uma casa e, por isso, mais do que obstruir a nossa imaginação com reflexões meta-artísticas bacocas, tantas vezes disfarçadas de leveza, António Poppe dá-nos a síntese dos modos barrocos em que o corpo se enreda, se procura escrever, isto é, estender as mãos para alguém que passa rápido demais (a vida, nossa amante). O verbo to rest sugere descanso: que pode ser um poiso ou uma pose, como pode ser a esteira final e insondável da morte (rest in peace). De qualquer modo, é uma missiva. Em papel, esse ecrã quente, corruptível, que regista toda e qualquer marca de impureza, que acolhe passionalmente os sinais de uma passagem. Trata-se, por certo, de fazer a aprendizagem sobre a dignidade que devemos ter em face de quem nos considera merecedores de atenção. Os nós, os torneados, as equações, o desenho, os alicerces de um corpo que não pode senão desejar: o que começa por educar o olhar, saber subir ao olhar, deitarmo-nos por cima do nosso alcance. No fim, ver na areia a provável cor de um sopro antigo.
As exposições Espiral e Rest in Paper podem ser visitadas até dia 20 de março.
A autora não escreve ao abrigo no AO90.
[1] O título do texto corresponde a um verso de O Livro da Luz, de António Poppe (ed. Documenta, 2014).