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Museu dedicado à cerâmica, a Fundação Albuquerque abre suas portas em Sintra

Foi há 65 anos quando Renato de Albuquerque levantou o braço para dar o seu primeiro lance em um leilão. Era um pregão no interior de São Paulo e, encantado, ele não sabia que a porcelana chinesa aparentemente perfeita estava quebrada do lado de trás. “O senhor a adquiriu nessas condições”, respondeu o leiloeiro por telefone àquele que tentava reaver o arremate frustrado. Mal sabia o engenheiro paulistano que aquela seria a peça seminal de uma das mais importantes coleções de porcelana chinesa do mundo. E que, mais de seis décadas depois, a sua paixão um tanto específica pela tal “cerâmica de exportação” ganharia um museu dedicado do outro lado do oceano.

A coleção de 2600 peças ocupa a recém-inaugurada Fundação Albuquerque, que acaba de abrir suas portas no dia 22 fevereiro em Sintra. Ainda que apenas 20% da coleção esteja atualmente exposta ao público, não é preciso grande esforço para entender a paixão Renato de Albuquerque – hoje com 97 anos – pelos objetos. Localizado na antiga quinta da família, o museu de tom terracota manteve o casarão principal e acrescentou espaços contemporâneos projetados pelo escritório brasileiro Bernardes Arquitetura. Tem tudo para ser um museu cobiçado pelos apaixonados por cerâmica; procurado pelos amantes da arte que adoram viagens culturais; e visitado por turistas em busca de experiências sofisticadas em passeios de um dia a Sintra.

Quem comanda a Fundação Albuquerque é a neta de Renato, a brasileira Mariana Teixeira de Carvalho, que conviveu com as peças de cerâmica durante toda a vida e que, trabalhando no mercado de arte contemporânea – passou por galerias de renome internacional como Luisa Strina, Hauser & Wirth e Michael Werner – teve olho para reconhecer que a coleção adquiriu tamanho e peso suficientes para transbordar as paredes dos cômodos do avô. “Ele falava: eu tenho umas pecinhas em casa, nada demais! Não se reconhecia como colecionador. Mas alguns anos atrás, no meio da porcelana chinesa, que é muito reduzido e todo mundo se conhece, começaram a perguntar o que aconteceria com a coleção depois que ele se fosse. Isso foi mais ou menos na mesma época da primeira exposição da coleção, no Metropolitan, que meu avô nem queria atrelar ao seu nome”, lembra Mariana. Intitulada Global by Design: Chinese Ceramics from the R. Albuquerque Collection, a mostra expôs 60 peças no museu nova-iorquino durante seis meses de 2016. Depois de tentarem doar a coleção para algumas instituições internacionais e brasileiras – surpreendentemente, nenhuma demonstrou interesse em manter a coleção em solo brasileiro – a família decidiu levantar as mangas e começar o seu próprio museu.

“É uma coleção que tem muitos objetos para uso doméstico, e ser mostrada dentro de um ambiente caseiro, onde meu avô morou durante alguns períodos, faz sentido. Dá também um ar convidativo e familiar para aqueles que nunca viram ou ouviram falar de uma coleção do gênero”, conta Mariana, ela mesma uma novata no assunto (“Vou visitar a China continental pela primeira vez agora no mês de março e não vejo a hora!”).

Para leigos como nós, vale explicar que a cerâmica de exportação, o foco da coleção, é aquela produzida na China e comercializada nos mercados estrangeiros a partir do século XVI, principalmente na era das grandes navegações, quando – sabemos – exploradores europeus buscaram novas rotas marítimas para acessar luxos asiáticos, como chá, especiarias, seda e porcelana. Portugal teve um papel fundamental nesse comércio, sendo o primeiro país europeu a estabelecer relações comerciais diretas com a China. Cerca de 40% das primeiras encomendas personalizadas desta época integram a coleção da Fundação Albuquerque. “As peças de exportação trazem com elas todo esse contexto, que tem a ver com o comércio, com o motivo pelo qual elas foram criadas, quem fez a encomenda, quem levou de volta, qual foi o trajeto que elas passaram, quais eram os países para os quais elas eram destinadas. É dessas histórias que o meu avô gosta”, conta Mariana Teixeira de Carvalho. Renato de Albuquerque percorreu uma bem-sucedida carreira na construção e planejamento urbano em São Paulo, o que também pode explicar a sua obsessão pela mobilidade e dinâmicas de deslocamento das cerâmicas de exportação. “Eu também tenho outra leitura: ele tem uma obsessão com a matéria. E a porcelana é tão delicada, tão frágil, mas sobrevive a queima em altíssimas temperaturas e tem uma vida super longa. Tem os pigmentos, que depois da queima se transformam em outras cores. O esmalte, que vai por cima, ou por baixo, tem tantas maneiras de explorar.” Daí a biblioteca especializada riquíssima, exposta no casarão do museu, que o engenheiro estudioso também foi construindo ao longo dos anos.

Mas, obviamente, a oferta e o conceito do museu não ficam parados na China do século XVI. O museu tem como objetivo incentivar a produção atual de cerâmica, linguagem que vem sendo marginalizada pelo mercado da arte contemporânea. Antes tarde do que nunca, artistas como Grayson Perry, Simone Leigh e Ai Weiwei, entre tantos outros que incorporam a cerâmica na sua prática artística, vêm sendo reconhecidos pelas bienais, exposições e galerias de arte contemporânea. Essa linguagem existe há milênios, e hoje artistas reinventam suas técnicas ancestrais, as reinterpretam, incorporam materiais não tradicionais e técnicas inovadoras. Grayson Perry, que se autodenomina um “fazedor de potes”, ganhou o britânico Turner Prize em 2003, a primeira vez que o prêmio celebrou um ceramista. Há décadas ele vem lutando pelo reconhecimento da cerâmica no meio da arte contemporânea, assim como Simone Leigha, a americana de origem jamaicana que só depois de 25 anos trabalhando como ceramista conseguiu a valorização da sua obra, sendo apresentada na Bienal de Veneza de 2022. A manualidade do material, a familiaridade do grande público com a argila e a sustentabilidade dos processos da cerâmica alimentam a criatividade dos artistas, mas por outro lado, são sistematicamente condenados pelo mercado da arte contemporânea que mantém seu status quo julgando e separando o que é arte – e o que, nesse caso, se diz ser artesanato.

Desta maneira, a escolha do americano Theaster Gates para inaugurar a programação contemporânea da Fundação Albuquerque não poderia ter sido mais pontual. Artista e urbanista de Chicago, Gates é conhecido por usar a arte para revitalizar comunidades marginalizadas e transformar espaços urbanos. Um de seus projetos mais impactantes é o Stony Island Arts Bank, um antigo banco que ele transformou em um centro cultural e que combina um arquivo histórico, uma galeria de arte e um espaço comunitário. Com a Rebuild Foundation, ele revitaliza bairros inteiros, transformando edifícios abandonados em centros culturais com programas de educação, arte e preservação da identidade e patrimônio da comunidade afro-americana.

Em uma das suas TED Talks, Theaster disse: “Passei cerca de 15 anos fazendo potes…você aprende muito rapidamente como fazer coisas incríveis a partir do nada. Sinto que, como oleiro, você também começa a aprender a moldar o mundo”.

Intitulada A mão sempre presente, a mostra individual do artista na Fundação Albuquerque surpreende ao mostrar o lado ceramista de Theaster Gates com peças como budas de barro e um piso inteiro repleto de azulejos de cerâmica negra feitos em Tokoname, no Japão, cidade onde o artista estudou olaria. Ali, arte é feita para tocar e pisar, e azulejo não é azul nem branco, mas preto. Gates recorre às narrativas ligadas à sua própria herança, citando influências como Dave Drake, ceramista escravo do sul dos Estados Unidos, que foi reconhecido e admirado pelas suas competências artesanais e pela coragem de gravar a sua assinatura nas peças, o que revelava a sua capacidade de ler e escrever (nos idos de 1870, este era um ato explicitamente proibido a um escravo).

“A história destes objetos [as cerâmicas de importação] é indissociável do imperialismo, do colonialismo, da exploração, da globalização e da luta pela supremacia comercial”, lê-se no texto que acompanha a mostra. O posicionamento crítico e ativo de Theaster Gates traz questionamentos sobre todas essas questões históricas e suas repercussões no mundo hoje. Ele também esteve no museu durante os dias de abertura para apresentar uma belíssima performance musical com sua banda “The Black Monks”. A música deles tem raízes na tradição negra do sul dos EUA, incluindo blues, gospel e cantos de lamento, mas também se conecta a práticas ascéticas, aproximando-se das tradições monásticas orientais.

Serão apresentadas de três a quatro exposições contemporâneas por ano na Fundação dirigida pelo curador e crítico ítalo-brasileiro, Jacopo Crivelli Visconti. Ele foi curador da 34.ª Bienal de São Paulo (2021) e das participações nacionais do Brasil (2007 e 2022) e do Chipre (2019) na Bienal de Veneza. Desta vez, ele convidou a curadora Becky MacGuire, especialista em porcelana chinesa para construir a narrativa da exposição permanente inaugural. “Visitamos várias coleções familiares que guardam uma riqueza cultural gigante, mas que são espaços que ficam parados no tempo, que não são vivos”, conta Mariana. Por isso, o empenho de implementar um programa público e educativo, e uma residência artística com foco, claro, na cerâmica, além do café e da loja-conceito que apresenta peças feitas por artistas e designers contemporâneos.

No final da entrevista para esta matéria, Mariana foi ao encontro da filha, e do avô. “Somos quatro gerações da família reunidas aqui”. As peças milenares passam, agora, a construir um novo capítulo da sua história.

Julia Flamingo é jornalista e pesquisadora especializada em arte contemporânea, nascida em São Paulo. É fundadora da plataforma digital Bigorna (@bigorna_art), que tem como missão usar linguagem simples e mediação para aproximar públicos da arte contemporânea. É redatora da rede global de curadores de arte Arpool.xyz, e curadora e escritora do grupo português Cultural Affairs. Julia foi jornalista de arte e crítica da revista Veja São Paulo e contribuiu para celebrados projetos culturais como o 4Cs, financiado pelo Programa Europa Criativa, SP-Arte e Bienal de São Paulo. É formada em jornalismo pela Universidade Mackenzie e em história pela PUC-SP, e tem mestrado em Estudos Culturais na Universidade Católica Portuguesa de Lisboa.

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