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Ergo Forte, de Martinho da Costa, no (A)Space

O trajeto da exposição, Ergo Forte, na galeria (A)Space, faz-se, primeiramente, por meio de um vislumbre inicial sobre o avesso de uma pintura, demonstrando, segundo o comissário da exposição, Frederico Vicente, a intenção expositiva de sair do posicionamento habitual da pintura, e a sua natural fixação sobre a parede.

Num percurso desvelado por uma sucessão de pinturas, dominado por grande fulgor pictórico, e mestria na execução, as pinceladas a óleo, do artista Martinho Costa, são desferidas sobre a tela, de modo lânguido, e suculento.

As várias pinturas, autoportantes, juntam-se umas às outras, formando um habitáculo, ou uma estrutura que se enleia, ou engasta, em modo de trama, com o ambiente da galeria. O próprio tecto aparenta uma similitude com o efeito quadriculado das pinturas, que se amparam e encetam, num jogo intrincado de relações, reforçando a qualidade site specific, pretendida na exposição de Martinho.

O artista está atento ao pormenor.

A exposição compreende um estreito elo com o espaço da galeria, com as suas paredes carcomidas ou pintadas de fresco, as portas fechadas, os nichos, os recantos, as cavidades.

Ao longo da estrutura, feita de pinturas posicionadas umas sobre as outras, ou lado a lado, despontam aberturas, através das quais se pode espreitar, ou, por detrás delas, ver surgir ainda mais pinturas, ou antes, mais avessos de pinturas, com escritos a vermelho, incluindo datas, títulos, ou potenciais lugares onde as obras podem ter sido realizadas.

Nesta cadência, vamos descobrindo, a ligação existente entre elas e as suas antinomias.

Na sua frágil sustentação, descobrimos pinturas de paisagem, pequenas grutas (talvez), unidas a outras pinturas que nos revelam azulejos de parede, seguidos de reboco caído, ou ainda, telas pequenas com elementos vegetalistas, junto a pinturas que representam o interior de um museu, onde os visitantes são representados, incógnitos, a apreciar obras de arte.

Também são representadas na tela jardins em grande escala. Neles encontram-se, escondidos, vestígios do urbano, e da vida banal do quotidiano, como mangueiras, estacas, pilares grafitados. Ânsia do artista, de representar tudo.

Uma pintura de um baldio é ladeada por outras telas mais pequenas. Pormenores vegetalistas ressurgem, assim como pessoas representadas corcovadas a trabalhar a terra, à mistura com imagens de mobiliário moderno: cadeiras estofadas, a denunciar um tempo já perdido, de crença industrialista.

Na sala mais ampla, um epítome impõe-se sobre uma tela: Fuck You I Won’t Do What you Tell Me. É a frase que nos dá as boas-vindas à entrada da segunda estrutura arquitectónica, habitáculo, da exposição.

Na armadura exterior do habitáculo, sustentado por pinturas, encontramos visíveis, e disponíveis, os seus avessos. Cobertos por palavras escritas, à mão, a cor azul.

Por entre os títulos, e datas de obras, podemos espreitar e ver o que a estrutura deixa entrever através das suas aberturas. Por dentro, anunciam-se novas telas. Na exposição de Martinho são inúmeras – mais de 60. Contornando a grande estrutura murada por telas, entramos para o interior, e somos arrebatados com tanto fulgor na cor, e forma voluptuosa, a que nos tem habituado o artista.

Como que, num jardim das delícias e dos prazeres terrenos, somos açoitados por uma poderosa comunhão de telas que nos causam espanto e deleite. O interior assalta-nos com um conjunto de telas dispostas na vertical, e relembra-nos os velhos salões de arte em Paris. Não é por acaso que Frederico Vicente[1] menciona o Salão Oficial da Exposição Universal de Paris, 1855, Courbet, e o Pavilhão do Realismo, em 1855.

Uma tela apresenta uma estatueta de um cão. Dourada e esfíngica, permanece hirta, em contraste com um fundo coberto por uma parede de azulejos setecentistas.

De seguida, deparamo-nos com uma outra tela a apresentar o interior de uma casa clássica. Outras pinturas vão sucedendo, algumas apresentam padrões, configurações quase abstratas, pessoas em museus antigos, a tirar fotografias, vegetação, apontamentos arquitectónicos, grades de janelas carcomidas, paredes de reboco caído (novamente), e por aí em diante.

O pendor arquivístico imagético de Martinho, reclina para um conjunto de referências que se justapõem lado a lado, num percurso, e numa jornada que não se apresenta de modo algum linear, quer em narrativas quer em sentidos. No seu discurso, e na sua lógica expositiva, poderia ser, como Eisenstein descreveria, e segundo Georges Didi-Huberman, uma “montage of attractions”.

Um processo associativo de imagens, que se estende sem associação aparente, um conjunto de arbitrariedades, uma revivescência melancólica de gostos artísticos antigos, em comunhão com os novos, evocando uma história de arte em constante mutação, e permanente análise. Uma abordagem, um tanto ou quanto lacónica. Um ensaio de cultura, uma Kulturwissenschaft.

A polaridade de imagens e estilismos vários, o movimento e ritmo que impõem ao longo da exposição, é um dos seus maiores ganhos e persistências.

Toques warburguianos parecem eclodir, em cada tom, cada forma, cada recanto da exposição. Uma biblioteca, ou laivos de uma antropologia visual[2], quão câmara de curiosidades, Wunderkammers, numa sucessão centrífuga[3], quasi cinemática, muito deleuzianada, e cinematográfica[4].

Numa consistência e compulsão do pathos do movimento[5], ou pathosformel[6], numa reprodutividade quase benjamininana[7],

Temporalidades, anacronismos, feitos de cortes, montagens, saltos, e de fósseis sobreviventes[8], como diria Didi-Hubermann.

A exposição está patente no (A)Space até dia 22 de março.

 

 

[1] Referência à Folha de Sala da exposição Ergo Forte.

[2] DIDI-HUBERMAN, Georges. “Foreword. Knowledge: Movement (The man who spoke to butterflies)”. In: MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg and the image in motion. Tradução para o inglês de Sophie Hawkes. Nova York: Zone Books, 2007, pp. 7-19.

[3] Ibidem

[4] Ibidem

[5] Ibidem

[6] Ibidem

[7] Ibidem

[8] Ibidem

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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