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Flaming Loneliness, de Lutz Braun

Atribuir excesso de significado às obras de Lutz Braun pode ser tão destrutivo quanto a falta dele. A sua prática artística, que tem vindo a transitar entre a pintura, o desenho e outras técnicas sobre diversas superfícies e materiais, combina elementos figurativos e abstractos em composições de sonho ou pesadelo, de maior ou menor familiaridade.

A exposição Flaming Loneliness, patente na galeria Jahn und Jahn, em Lisboa, é testemunho dessa abordagem baseada na exploração de uma espécie de realismo abstracto[1]. O artista alemão, através da sua prática experimental, cria uma poética visual que parece comportar o colapso e, ao mesmo tempo, esperança. Entre paisagens coloridas e ruínas em chamas, a ambiguidade é latente, impossibilitando interpretações definitivas. Há a sensação de que cada obra contém — ou poderia conter — ecos de outra, como vestígios de uma narrativa sucessivamente interrompida ou reescrita. Essa desconstrução não parece ser casual, mas sim um mecanismo pelo qual Braun reflecte sobre o mundo contemporâneo, sua instabilidade inerente e os seus próprios dilemas. A dimensão social e política da obra do artista é sabida, mas apresenta-se sempre como uma presença discreta. Braun não estetiza crises, mas incorpora a tensão do mundo na sua própria linguagem.

Um estranho fascínio ressoa através de contornos e de elementos que denotam o estilo narrativo singular do artista. Trata-se de um desdobramento de camadas de histórias que se contaminam sem nunca se fecharem completamente; pedem uma participação activa na tentativa de decifrar significados. Cada obra poderia ser uma brecha de um universo por explorar, que nos poderia engolir. Um conto, um frame de uma narrativa que corre para além da nossa presença, onde a procura por um entendimento mais concreto, por um desenlace, nos pode consumir. Lembro-me do conto O Zahir, de Jorge Luís Borges, onde uma moeda se torna um labirinto sem saída. Uma vez visto, o objecto torna-se inesquecível e a obsessão pela sua compreensão cresce até que a consciência do observador é consumida, levando à perda da sua própria identidade. Da mesma forma, as obras de Braun, absorvem-nos e arrastam-nos para dentro de narrativas indefinidas onde, ao tentarmos o excesso de atribuição de significado, corremos o risco de nos perdermos em lugares em constante mutação, esquivos e escorregadios. Vejo, no seu trabalho, o mesmo tipo de assombro encontrado n’O Zahir, um abismo de realidades fictícias, uma fenda que consome aquele que procura encerrar qualquer coisa.

Ao longo das salas, assistimos a uma exploração de uma dialéctica que navega entre destruição e renovação. Paisagens, caveiras rabiscadas e figuras carregadas de uma espécie de melancolia inescapável habitam os seus trabalhos, simultaneamente sombrias e cativantes, como se, no meio da inevitabilidade, houvesse sempre uma possível e desejada transformação. Braun parece trazer, para depois poder escapar, a fatalidade pura e cria obras que contêm uma força de resistência e vida latente, seja através da representação de figuras que seguram uma taça de vinho numa gruta (Archäologie), de uma gata a amamentar (Dirección Navional de Migraciones Buenos Aires 2009) ou através da utilização de cores garridas e vibrantes, como se, mesmo nas cinzas, houvesse sempre a promessa de algo novo — mas em relação à cor já lá iremos.

As obras apresentadas na galeria não têm de ser vistas, parece-me, como um conjunto necessariamente coeso, mas sim como um universo fragmentado, que se dissolve numa atmosfera inquieta, que vibra. Cada obra é um campo solitário de imaginação, miragem de acontecimentos do passado ou do futuro, em que a atribuição de um significado excessivo seria reduzi-las; ignorar a sua potência evocativa, por outro lado, seria esvaziá-las.

Braun inscreve na sua obra uma temporalidade elíptica, onde o que foi e o que nunca será coexistem numa mesma superfície. Recusa a pretensão de um discurso fechado; pelo contrário, desafia a experienciar o intervalo, o não-dito, a hipótese. Procura afastar a noção de tempo da sua obra e, por isso, tende a não datar os seus trabalhos, talvez numa tentativa de desprendê-los das amarras culturais que os colocam num período específico, talvez numa tentativa de que não nos seja possível arrumá-los como um puzzle e montar a história – dele e dos diversos mundos que o habitam – permitindo que existam por si mesmos, suspensos num tempo indefinido, ou em vários tempos em simultâneo.

A cor assume um papel central neste jogo de quase-delírio, oscilando entre tons vibrantes e luminosos, e esboços e traços monocromáticos. As escolhas cromáticas não definem apenas atmosferas, mas amplificam a carga emocional das obras. Não é, na produção artística de Braun, mero artifício estético; impõe-se como uma linguagem própria, uma forma de traduzir estados de espírito, percepções e sentimentos.

Talvez seja essa a maior força de Flaming Loneliness: uma exposição que sussurra segredos de memórias e lugares através da cor, que brinca com o fogo, para que possamos, para já, escapar a um fim definitivo.

A exposição poderá ser visitada na galeria Jahn und Jahn até dia 8 de março.

 

 

[1] Ideia explorada pelo artista na conversa com Alma Wood, em Julho de 2023, presente no catálogo Lutz Braun, Abstrakter Realismus, Malerei 1998-2023

Maria Inês Augusto não escreve ao abrigo do AO90.

Maria Inês Augusto, 34 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) na área dos Serviços Educativos como estagiária e trabalhou, durante 9 anos, no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada durante várias edições e colaborou, em 2023 com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas. Desenvolve, actualmente, um projecto de Art Advisory e curadoria, colabora com o Teatro do Vestido em assistência de produção e tem vindo a produzir diferentes tipos de texto.

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