UmbigoLAB @ ArtWorks No Entulho: Entrevista a Sofia Mascate
Aproximaram-se o atelier e a fábrica, e fundiram-se a pintura, os materiais inutilizáveis e outros excedentes industriais que lhe serviram de matéria de criação. Até pode parecer que ambas as realidades, originalidade e engenho, estão a vários passos de distância mas este ano houve provas da sua afinidade. A derrubar assunções e a estabelecer pontes colaborativas esteve Sofia Mascate, a artista recentemente selecionada para a residência artística promovida pela UmbigoLAB e a ArtWorks No Entulho. No rescaldo desta experiência, a artista falou à Umbigo para desvendar um pouco o resultado final, o processo e as referências; abordando ainda o seu livro Tactical Retraction (2022), uma coleção de ensaios sobre pintura de natureza-morta, publicado pela Materialverlag-HFBK, e duas das suas últimas exposições individuais – Gilded Cage, no New Jörg, Viena (2024) e Pick Me, no BPA Space, Colónia (2022).
Mafalda Ruão: Foste a mais recente artista selecionada para a residência artística promovida pela UmbigoLAB e a ArtWorks No Entulho. O que te atraiu nesta proposta?
Sofia Mascate: Esta proposta surgiu numa altura em que me encontrava em confronto com as limitações da minha prática de atelier. Tinha começado a pintar em vidro e tinha vontade de aumentar a escala e desenvolver a complexidade das peças, mas não tinha recursos para o fazer sozinha. A residência No Entulho, com a sua ética de reaproveitamento de materiais industriais excedentes, surgiu como solução perfeitamente talhada a este problema.
Durante a minha estadia, proporcionaram-me um arsenal gigante de vidro, janelas duplas, e caixilhos que não seriam utilizados. O acesso a estes materiais não foi o único aspecto que me interessou. A fábrica disponibiliza as suas oficinas e equipa para apoio do projeto, desde a concepção dos desenhos técnicos até à pós-produção das peças. Um método de trabalho muito diferente do meu, enquanto pintora-multitarefas. Pintar é um processo laborioso, cheio de imprevistos, solitário q.b., que requer tempo, foco e atenção. Na fábrica, a estratégia de produção é mais colaborativa, com um pensamento premeditado e rigoroso. Foi uma experiência que me ensinou a aplicar outras abordagens e a integrar outro tipo de pensamento no atelier.
MR: A tua candidatura destacou-se pela investigação em torno do campo expandido da pintura e da obra de Josefa d’Óbidos, figura associada ao barroco e reconhecida principalmente pelas suas obras de temática religiosa e naturezas-mortas. Associar esta referência ao entulho, enquanto matéria-prima para a criação, parece-me um grande e interessante caminho. Podes explorar a ideia que te motivou e a conexão a esta figura e à sua época?
SM: A minha afinidade pela pintura de natureza-morta do período Barroco floresceu enquanto escrevia a minha tese de mestrado Tactical Retraction, dedicada a esta tipologia. Esta tese dividiu-se em cinco ensaios, cada um focado numa manifestação diferente da pintura de natureza-morta. O que uniu estes ensaios foi a análise de uma atitude sistemática da história de arte que relegou este género, uma tendência que se estende à crítica cultural contemporânea. O objetivo foi explorar as possibilidades discursivas deste tipo de pintura que têm sido ignoradas, de modo a incitar uma nova leitura da história da arte.
Escrevi um dos ensaios sobre a Josefa de Óbidos, cujo trabalho é pouco reconhecido internacionalmente. As suas naturezas-mortas surgem no contexto ibérico do bodegón, e em comparação com outros mestres dessa época como Juan Sánchez Cotán ou Francisco de Zurbarán, são pouco mencionadas dentro do género. Além disso, vários críticos em Portugal frequentemente se referiram ao seu trabalho como “pinturinhas”, com associações diminutivas associadas ao feminino e ao seu estatuto enquanto “Donzela Emancipada”, solteira e independente da sua família. A obra da Josefa é uma grande referência para mim, daí essa vontade de trabalhar a partir do seu legado e de querer contribuir para o discurso em torno da sua pintura.
MR: Na verdade, falamos de uma artista que reúne um conjunto de características particularmente relevantes. Viveu numa época de grandes limitações para o movimento da mulher e para a sua educação; tendo, por outro lado, sido um exemplo de emancipação. Sentes que ainda há muitos preconceitos e estereótipos a serem ultrapassados no que concerne o papel da mulher na arte?
SM: Claro. Só mesmo o facto de se considerar o trabalho da Josefa de Óbidos relevante na contemporaneidade por ser mulher, e não pelo seu próprio mérito, prova que a sua obra não é julgada em patamar de igualdade com outros pintores seus contemporâneos.
Ninguém precisa de discutir a masculinidade dos icónicos e canónicos mestres, nem de que maneira essa afectou a sua relação com a pintura. Foi precisamente essa ausência de debate crítico em torno da obra de certos pintores que motivou o projecto da exposição Pick Me, no BPA Space em 2022, centrado na figura da Infanta Margarita Teresa na obra de Diego Velázquez. Este projecto analisou o trabalho do pintor por detrás da maquinaria da monarquia Habsburgo, e o modo como a sua pintura influenciou a vida da Infanta. Através dos retratos infantis realizados pelo pintor, Margarita Teresa foi prometida em casamento ao seu tio, o imperador Leopoldo I – um exemplo claro da instrumentalização do seu corpo e imagem para fins políticos. Este contraste entre a posição passiva da Infanta e as funções políticas de Velázquez, homem da corte com tarefas além da pintura, é uma dinâmica pouco explorada. O foco nestas questões é talvez um passo para repensar práticas artísticas na história e no presente ao desmantelar certas narrativas e considerar perspectivas negligenciadas.
MR: E como se traduziram esses pensamentos no resultado final da residência?
SM: Os trabalhos que produzi na residência baseiam-se na série de Vedute (natureza-morta com paisagem) que a Josefa de Óbidos pintou em 1668. Esta série corresponde a uma pintura para cada mês do ano, e está maioritariamente inacessível por se encontrar em diversas colecções privadas. Quis trabalhar com o mistério desta série, e com as suas camadas visuais de natureza-morta em primeiro plano, paisagem em último.
Pintar em vidro permite explorar um processo de pintura menos frontal e linear. Ao sobrepor diversas camadas de vidro, quis gerar uma maior profundidade pictórica e brincar com a transparência do suporte. Ao explorar estas novas possibilidades pictóricas de encontro com o entulho da fábrica, surgiram diversos tipos de trabalho sobre vidro. Um grupo de trabalho é assumidamente tridimensional, com pinturas distintas na frente e no verso. Para estas peças, desenvolvemos estruturas de modo a expor a pintura no espaço, possibilitando que o espectador a observe de ambos os lados. Outro grupo de trabalho, são peças de parede, onde pintei em duas camadas de vidro, frente e verso. Estas são sobrepostas e expostas na parede, com uma visualização bidimensional.
Também realizei uma pintura sobre 3 camadas de acrílico, que recebeu uma moldura em ferro com corte a jacto de água. O desenho da moldura tem como base uma pintura da Josefa de Óbidos. O corte imprimiu ferrugem na sua superfície, criando uma ornamentação floral e a inscrição “Donzela Emancipada”.
MR: Pego precisamente na deixa da “Donzela Emancipada” e na referência anterior a Velásquez para invocar novamente a tua necessidade de ponderar criticamente o papel do pintor no passado e no presente. Debrucemo-nos sobre uma das tuas recentes exposições, Gilded Cage, composta por uma série de pinturas que partiram da tua própria história e experiência pessoal para uma reflexão mais vasta desde a Idade de Ouro até aos tempos atuais. O que podes partilhar sobre esta experiência?
SM: O corpo de trabalho para essa exposição foi produzido enquanto residi numa casa-atelier em Viena, que foi uma bolsa de estudos para o meu último ano do mestrado em Critical Studies na Akademie der bildenden Künste em Viena. Durante o período de um ano, vivi num edifício que data 1788 chamado Haus zum Reichsapfel, que traduzido significa “casa do globo imperial”.
Os proprietários desta casa – os meus mecenas durante este período – gerem uma empresa de investimento privada. Nestas circunstâncias tão caricatas, o interior desta casa, com a sua opulência e mobília caracteristicamente cristã e imperial, coincidiu com questões com que me debato na minha prática artística.
Na altura, em preparação para a minha segunda tese de mestrado, li bastante sobre Diego Velázquez e Nicolas Poussin e as suas experiências a pintar para as respectivas cortes. Velázquez foi um exemplar pintor da corte que elevou o seu cargo através da sua habilidade técnica, mas que pouco pintava dadas as suas responsabilidades na corte real. Poussin, por outro lado, foi pintor da corte de Bourbon para Luís XIII durante dois anos, até rescindir da posição de modo a privilegiar a sua autonomia artística, viver em Roma, e pintar longe das ordens do mandato real francês – no entanto, enquanto pintor, teve de responder às exigências dos seus colecionadores franceses o resto da sua vida para sustentar a sua prática. Esta tese foi um levantamento sobre a ideia de autonomia artística no passado e no presente, com foco em dois grandes exemplos do século XVII e, ironicamente, nas minhas circunstâncias pessoais.
O conflito da subordinação artística perante necessidades financeiras é uma realidade que afeta todos os artistas. Enquanto vivia e trabalhava em circunstâncias de mecenato, fui confrontada com essa realidade a um nível material. As pinturas expostas em Gilded Cage fazem parte dessa reflexão, incluem bastantes referências à minha tese de mestrado e às obras de Poussin e Velázquez, enquanto foram diretamente influenciadas pelo local onde foram produzidas.
MR: E daqui, o que se segue?
SM: Vou expor no stand da Galeria Madragoa na ARCO Madrid e fazer uma intervenção no stand da Umbigo. Também está em planeamento a apresentação do trabalho desenvolvido durante a residência.