Pedra que pariu, de Rita Senra
Pedra, Papel, Tesoura, enquanto jogo tradicional e recreativo, institui um sistema cíclico de forças em constante alternância. Num frente a frente, elementos díspares entram em confronto, expondo o seu domínio e vulnerabilidade: enquanto a pedra vence a tesoura, pois quebra a tesoura, o papel é vencido por esta, que o corta. Por sua vez, a pedra é derrotada pelo papel, que a envolve e subjuga. A instabilidade inerente a esta estrutura dialética, na qual cada elemento se inscreve simultaneamente como potência e fragilidade, ecoa na obra de Rita Senra, Pedra que Pariu, atualmente em exibição no Sismógrafo.
O ímpeto do trabalho de Senra encontra-se no fenómeno nacional das pedras parideiras, que revestido de palavras se impõe como um poema de grande escala. A pedra que pare pedra não é apenas um elemento mineral fixo, mas um sistema em transformação, marcado pela ação do tempo. Esta é constituída por um granito, único em Portugal e raro no mundo, que apresenta numerosos nódulos biotíticos com a forma de discos. Num processo de contração e dilatação, os nódulos de biotite, em resultado das variações térmicas e dos processos de erosão, soltam-se da pedra mãe e tornam-se unidades singulares. Se, nas pedras parideiras, os nódulos biotíticos se soltam da matriz granítica, no trabalho de Senra, a palavra liberta-se do seu enunciador e transforma-se num corpo independente. Ainda assim, este desprendimento não ocorre sem marcas. Tanto na pedra como no discurso, há vestígios do que se encontra, agora, ausente.
Cada letra, meticulosamente cortada à mão, carrega em si a possibilidade da ausência, pois o corte manual implica um risco inerente de perda. Neste processo de tentativa e erro, o texto constrói-se como um tecido de marcas onde a inscrição e a lacuna coexistem, reforçando a relação entre presença e ausência, resistência e fragilidade. Ainda que a palavra atue como um dispositivo de preservação, conservando-se a si mesma no ato de enunciação, a sua permanência está sempre condicionada à materialidade do suporte. Neste caso em específico, a escolha recai sobre o papel, um material que, apesar de leve e vulnerável, assume a função paradoxal de conter e suportar o discurso, reiterando a debilidade própria do ato de escrever e nomear.
A palavra, por sua vez, abstrai do grande plano o processo minucioso a que cada folha de papel é submetida, deslocando a materialidade do gesto para a dimensão do discurso. Senra, num processo moroso e de extrema minúcia, corta manualmente as folhas de papel, que individualmente mergulha em cera de abelha a uma temperatura previamente testada. Depois de secas, as folhas são cosidas, uma a uma, na máquina de costura. O ato de coser o papel inscreve-lhe um paradoxo: a linha que une também perfura, marca, fere, desvelando ou acentuando a sua efemeridade. Contudo, aquilo que nos parece, à primeira vista, como precário revela-se como o próprio dispositivo de resistência da palavra. Tratar-se-á da Vida tornada visível, sensível? (Deleuze, 2011, p. 121) Ou, ainda, da circulação da própria vida?
Tal como um jogo só se joga mediante o cumprimento das suas regras, a força deste poema é garantida pelas forças verticais e horizontais que o intercetam. Não se trata de ver quem vence, mas de evidenciar o equilíbrio dinâmico deste enlace, no qual cada elemento fixa a sua função mediante a presença do outro. O papel torna-se o umbigo da palavra, enquanto esta opera, à maneira de Deleuze, por variação, expansão, captação a partir de vínculos localizáveis entre pontos e posições. Num discurso que alterna, em cadência rápida, a enunciação pessoal e apessoal, mediante um jogo complexo de pronomes e verbos descritivos cujo ritmo se organiza a partir de uma estrutura repetitiva – “pedras que” –, estabelece-se um pacto da fala: o outro, narrador, já não é exterior, uma substância fechada, mas uma zona de passagem de rememoração. As pedras que insultam, distraem, pesam ou esmagam são também aquelas que curam e abraçam.
O que as pedras são, o que podem e o que fazem tanto vale na primeira pessoa do singular como do plural e é neste fluxo e relação que empreendemos a tarefa de procurar o contraste, entre a sombra e a cor, que nos permita compor o poema. A intermitência entre leitura e ilegibilidade impõem ao olhar um esforço contínuo de ajuste e de procura pelo ângulo certo. À medida que avançamos, algumas palavras surgem e revelam a frase a que pertencem enquanto outras se dissipam, gerando assim um estado de rutura iminente entre captação e perda. Talvez a ideia seja mesmo essa – a impossibilidade de recuperar plenamente um espaço de origem, bem como, e recuando ao título da obra, a frustração de um retorno impossível ao conforto de um útero. Entramos, então, num combate perante a volatilidade da palavra, confrontando-nos com a sua resistência à fixação e à permanência. Um verdadeiro atletismo afetivo, onde a palavra, leitura e a memória operam num regime de esforço, tensão e deslocamento contínuo.
Pedra que pariu, de Rita Senra, está patente no Sismógrafo, no Porto, até 22 de março.
Bibliografia:
Barthes, R. (2004). O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes Editora.
Deleuze, G. (2011). Francis Bacon Lógica da Sensação. Lisboa: Orfeu Negro