Os aromas do turvo cristal
E como eu poderia conhecer-me, sem olhar a tua máscara de vidro?
(Camilo Tomasio)
A democracia grega ainda não era nascida quando Pitágoras pensou ter desvendado, nas elipses dos astros e nos sons emitidos pelos martelos dos ferreiros, a oculta matemática que governa todas as coisas. Traduzida à arte, a proporção áurea guiou as esculturas e templos que em pedra revelavam a harmonia de um cosmos onde todas as partes conservam autonomia, mas se unem em louvável coesão. Seria tão estranho, portanto, relacionar o belo clássico de impecáveis proporções ao advento da democracia ateniense onde também os indivíduos, como os membros marmóreos de uma estátua perfeita, conservam identidade própria mas integram-se num coeso corpo social? A imaculada transparência de uma sociedade em harmonia tanto consigo quanto com os mecanismos do cosmos era conservada, no entanto, através da exclusão de todas as partes entendidas como irregulares — mulheres, escravos e estrangeiros foram bestializados e expulsos do corpo coletivo. A democracia moderna, na transparência helénica inspirada, entende-se, no entanto, sob outra ótica. Assim como a pólis grega, também a cidade moderna impulsiona a democracia, desde os burgos até as megalópoles atuais, mas não contém a justa proporção dos mármores esculpidos, pois apaixonada por um outro material.
Milagre tecnológico, no medievo, alquimistas viam no vidro o símbolo da transmutação. Nele vislumbravam a prima materia, massa vital presente em todas as coisas. Pois que outra explicação surgiria ao misturar-se areia, calcário, sais minerais, potassa e óxidos metálicos, todos opacos, e deles extrair película transparente? O vidro seria a vitória do intelecto, que refina e neutraliza os díspares. Tal temperamento abstrato agradou os arquitetos modernos que preteriam o passado, abominando ornamentos e sua antiga iconografia — a chapa de vidro é o palco do esperançoso esquecimento onde dança apenas a luz de um novo começo. Dele são feitas as novas cidades de embriagante amplitude, domínios de cristal onde tudo é refletido num leviano desapego depois conhecido como International Style. O encanto com tal luminescência revela o impulso iconoclasta da arquitetura moderna, que sonha em concretizar a utopia iluminista — todas as divergências são nela dissolvidas, promovendo uma democracia mais aberta apenas em aparência: qualquer um pode nela entrar, contanto que abdique das singularidades de sua origem, transformando as nódoas opacas de sua identidade em translúcido vidro. Também assim é a psique moderna: das antigas tradições conserva apenas o timbre de racionalidade que será a matéria prima do sujeito universal, por inteiro transparente consigo. O flaneur moderno caminha por uma pólis de cristal que, assim como a sua mente, é desprovida de becos estreitos e cantos escuros.
Em The Matter of the Glazed Fence, Sabine Hornig explora as dimensões plásticas e políticas da transparência. Não à toa, no título da mostra matter significa tanto matéria quanto questão: num cenário de instabilidade social predado por políticas conservadoras, anti-migratórias e higiénicas, no quê o exame artístico da cerca vitrificada pode estimular-nos?
A resistência ao imigrante não raro emprega tropos típicos do género de horror: o advento do monstro é catastrófico pois ameaça a ordem social, entendida como perfeita — para preservar a utopia, deve ser exterminado. Tal antigo enredo encontra o seu auge justo na mitologia grega, cujos jovens heróis de invejável beleza glorificam-se no assassinato de monstros: quando o leviano e translúcido Perseu se serviu do reflexo de seu escudo para decapitar a terrível Górgona, vingou-se não apenas de sua feiura física, mas sobretudo de seu olhar, que opacificava tudo o que via, embaçando a transparência das coisas. Tal repulsa ao estranho denota, na realidade, um temor a si próprio: é de dentro que a transparência é turvada, como se a sua opacidade reprimida ansiasse sair. O monstro não é figura vilã, mas justo o revelar de tudo em nós que foi recalcado, ou nossas possibilidades não exercitadas, lembrando-nos que o indivíduo não é transparente a si pois de essência desconhecida, e espantosa — em nosso íntimo habita a alteridade que visamos exterminar. Caso assimilada, expandirá o indivíduo para territórios de uma riqueza inexplicável ao purista. Como o indivíduo recluso que sustenta sua suposta pureza em quebradiços alicerces de cristal, também as cidades devem aceitar-se como territórios de confrontos e divergências cuja potência é justo o embaçar do vidro em novo cromatismo — como fazia-se, inclusive, na grande influência de nossas metrópoles modernas: as catedrais góticas foram as primeiras luminosas utopias que inauguram pedaços de paraíso na terra, mas encontravam encanto na riqueza de seus vitrais. Talvez então a falta de caráter de nossa vidraria denote um esgotamento íntimo. Não à toa John Ruskin contrariou os vidros industriais com os vitrais de Veneza, admiráveis em sua singularidade artesanal. Apontava assim para outro tipo de humanidade, quem sabe mais monstruosa — ou não seria a sua imperfeita opacidade mais próxima de Medusa que de Perseu?
Mediante uma série de operações que equilibram controle e acaso, Hornig visa corromper a transparência vítrea numa mais significativa tapeçaria de múltiplas camadas que aceita o espírito vertiginoso do verdadeiro senso cívico. Em suas obras a transparência é não só a base para sucessivas experimentações, mas também o palco que acolhe as circunstâncias do entorno, em distintos ângulos construindo um espaço de filtros e reflexos onde tudo é transformado e entrelaçado num bestializar do próprio tecido do real, agora mais complexo. Um platónico organizaria tal diversidade em graus de crescente ilusionismo. Mas contestar o idealismo da translúcida verdade é contemplar todas as dimensões em igual encanto — por elas transitar é justo amalgamar a realidade numa monstruosa experiência onde facto e impressão são incorporados sob a riqueza da experiência humana: atravessar é sintetizar opostos, convertendo muros em pontes.
Também a peça de centro Wahlkabine (Voting Booth) é um muro que subverte a sua função suposta: sua materialidade vazada ironiza a solidez dos tijolos, e sua forma serpentina dobra o espaço para nos atrair ao seu íntimo. Aqui, o desencontro dá-se não pela arquitetura, mas na atitude do espectador, que ignora o diálogo sugerido entre-barras para em solidão exercitar a democracia, sendo enfim confrontado por si — o vidro da mesa constrói dupla ironia: tanto comenta a hipócrita transparência quanto promove o reflexivo encontro com o outro em nosso íntimo. Sua configuração modular e estrutura suspensa alude também ao modelo residencial modernista, que construía cidades-edifício multi-culturais e cujos pilotis desocupavam o solo para o livre usufruto de toda a humanidade, embora também separassem a vida particular da esfera pública. Le Corbusier, seu inventor, não só enfatizou o universalismo de seu sistema modular quanto baseou suas dimensões na anatomia ideal de seu modulor, figura humana inspirada no mesmo retângulo áureo antes cultuado pelos gregos.
A estrutura repetitiva das cidades modernas, com suas janelas modulares e blocos de apartamentos, é outro sinal de uma neutralidade que se conserva ao uniformizar o diferente. Sua imaculada racionalidade é perturbada por Hornig não só na plasticidade de seus métodos, mas também mediante o conteúdo de suas imagens, que representam manifestações espontâneas como grafittis, andaimes e desgastes nas fachadas, citações anónimas e passeatas. Pois quando a vida é permitida escoar, nada se conserva o bastante para se repetir. As utopias, sonho máximo da esperança, são também desumanas — sua perfeição permite apenas o tributo do solitário sonhador, tornando-se assim uma tirania de boas intenções.
Como buquês de vidro que não emanam aroma, o quebradiço desabrochar de tais grandiosos sonhos talvez decepcione o amado presenteado, caso não lhe seja permitido emprestar o seu próprio odor às idênticas flores. A transparência do vidro é tanto pura quanto anémica, e anseia também ser alterada por agentes externos. Em Stativ Tripod, duas fotografias de buquês em janelas estendem, em outros motivos, os temas gerais da mostra — pela sua materialidade e simbologia, a janela é símbolo unívoco da prática de Hornig: é, em simultâneo, a porosidade que rompe a rigidez e a repetição que a impõe, a abertura ao diálogo entre ambientes distintos e a hipocrisia desta abertura, o reflexo de quem a contempla e o esquecimento do eu perante a paisagem. Heidegger reflete que a ponte não apenas interliga os opostos como, sobretudo, inventa o conceito de margens ao sintetizá-las sobre si, terceiro território. Neste sentido somos todos marginais, pois ocupamos o ponto médio entre o eu e o outro — quem imita o próprio intestino expande a epiderme para ampliar a superfície de contacto, digerindo-se em gloriosas transformações. Também as cidades são assim, em sua rugosidade: dobram a superfície planetária para habitarmos o espaço das mais intensas trocas.
Também por isso pousamos buquês em janelas abertas, para da interação com o mundo extraírem força vital, desabrochando os seus botões no exercício de um novo começo do qual toda a vida depende. Suas pétalas caídas são tanto o delicioso sacrifício da imperfeição que existe em todo diálogo quanto a lembrança de sua preciosa finitude. Em Glitch Raster, a artista investiga a fragmentação de sua silhueta, talvez em homenagem aos exuberantes monstros que contrariam a coesão dos corpos puros. De volta a Stativ Tripod, o espectador poderá notar serem instantes distintos de duas parecidas espécies botânicas. Ao posicioná-las perpendiculares, uma reflexão temporal é sugerida: o futuro contempla o passado e confunde o florescer alheio de vaso cristalino como o seu auge agora perdido. Talvez entretenha regressos que violentam o seu estado atual sem perceber não passar tudo de arrogante nostalgia, ou míope insegurança.
The Matter of the Glazed Fence, de Sabine Hornig, está patente na galeria Cristina Guerra até 15 de Março.