Aqui e em Todo o Lado, de José Pedro Cortes
O instante não pertence ao passado nem ao futuro. Torna-se matéria em latência, um momento em aberto no espaço e no tempo. As fotografias de José Pedro Cortes habitam precisamente esse território, e tal não é um acaso, mas a sua condição essencial.
Não há, aqui, enunciados fixos, mas sim fragmentos do real que ao recusar a sua própria linearidade se tornam enigmas. Tal como não os deciframos inteiramente, também não conseguimos definir em absoluto o tempo que os antecedeu, ou aquele que os irá suceder, para além do olho que os habita. A única certeza, talvez, é a do enquadramento da visão do artista-fotógrafo que dá corpo-presença às imagens.
Procuro inicialmente desvelar possíveis significados, encontrar camadas que constituam as obras. Contudo, apercebo-me que o objetivo da exposição é precisamente o oposto, pois o exercício que o artista nos convida a fazer não consiste na depuração imagética, mas sim na deambulação poética. Se a princípio me apercebo da abertura ao instante enquanto matéria essencial, essa latência expande-se para o meu corpo.
Debruço-me, então, sobre dois elementos que emergem subtilmente no espaço expositivo: o tempo e a água.
Os jovens brincam num rio, debaixo de uma ponte. O mergulho é iminente. Mas o que significa mergulhar no fluxo heraclitiano destas águas? Imagino os risos e os sons, os ecos que se expandem entre os grandes pilares da ponte – matéria construída – e a água.
“Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio… Ele dispersa-se e junta-se novamente, e aproxima-se e afasta-se.”[1] (Heraclito in McKirahan, 118)
“Para os que entram nos mesmos rios, diferentes e novamente diferentes águas fluem.”[2] (ibidem)
“Nós entramos e não entramos nos mesmos rios. Nós somos e não somos.”[3] (ibidem)
O primeiro fragmento de Heraclito remete-nos para a ideia de que não podemos imergir no mesmo lugar duas vezes, pois as águas estão em constante movimento. O segundo e terceiro fragmentos – ‘o entrar e não entrar’, o ‘ser e o não ser’ – poderão, talvez, esboçar-se na irreversibilidade material, nos limites da existência. Transcendendo o fluxo da água, há o fluxo do corpo humano e do ar, das camadas de pedra e betão que compõem a ponte num devir entrópico. Debruço-me novamente sobre estes jovens. Se um dia voltarem a percorrer as mesmas águas, será para além do corpo que os habita, enquanto matéria do mundo que ultrapassa a vida humana, pois o passado reside agora a jusante. Contudo, José Pedro Cortes insiste em fixar o instante, em deter o fragmento numa eterna juventude, como se a matéria que constitui as memórias fosse feita de uma substância diferente de todas as matérias do mundo.
Numa outra fotografia, sobre a pele, uns brinquedos, o exercício irrepetível do ludismo. Brincar por brincar, onde cada parte do mundo é espaço em potência para a imaginação. Se há ato sagrado neste lugar, é o do poema que habita a imagem. Mais uma vez, o fotógrafo interroga o tempo e a sua substância. A pele do corpo é montanha e mar, substrato de contacto com o sentido primordial do gesto puro da criança. A água regressa reiteradamente às obras do artista, ora como margem sobre a qual caminhamos, como movimento entre as pedras, como elemento que escapa à gravidade, como humidade remanescente, ou ainda, fundamento que, ao ser consagrado, se torna ele próprio sacralizante.
Por fim, os resquícios, os despojos, elementos corroídos, antropogénicos, que nos remetem, uma vez mais, para o precipitar entrópico do mundo.
Vejo um busto de pedra e Guernica entorpecida. Lembro-me de Benjamin (2010), do Anjo da História que tenta voltar atrás e acordar os mortos, mas o vento-turbilhão sopra do Paraíso, enrodilha-se nas suas asas, e empurra-o inevitavelmente para o futuro. Guernica é a imagem da imagem, a réplica remetida para um canto, e trazida à luz pelo artista, esboçando-se a importância desta obra enquanto manifesto contra a violência. Guernica reverbera nos dias de hoje. Tal como o Anjo da História, não podemos alterar o passado, mas há ainda campo de ação sobre o presente. O sentido de resposta é ambíguo, mas esboça-se subtilmente nos indícios que humanizam.
Talvez, por isso, a viagem-poema de José Pedro Cortes não pertença nunca à ordem da fotografia documental, pois os poemas não registam factos. Pertencem ao sentido ontológico que interroga o tempo e a sua substância, e que nos coloca perante um real que não se esgota, mas antes, faz brotar o visível.
A exposição está patente na galeria da Brotéria até dia 12 de março.
[1] Fragmento 91. Tradução do inglês para português por Margarida Alves: “It is not possible to step twice into the same river… It scatters and again comes together, and approaches and recedes.”
[2] Fragmento 12. Tradução do inglês para português por Margarida Alves: “Upon those who step into the same rivers, different and again different waters flow.”
[3] Fragmento 49a. Tradução do inglês para português por Margarida Alves: “We step into and we do not step into the same rivers. We are and we are not.”
Bibliografia:
BENJAMIN, Walter, O Anjo da História, Editora Assírio Alvim, Lisboa, 2010. ISBN: 978-972-37-1361-9.
MCKIRAHAN, Richard, Philosophy before Socrates: An Introduction with texts and commentary, Hacket Publishing, Indianapolis, 2010 (1994 ed. original).