Top

For My Best Family de Meriem Bennani: uma alegoria dos afetos

Em criança, quando levava a minha mãe ao limite da irritação, ela perseguia-me pela casa, fazendo-me mira com um chinelo ou um sapato de casa. Obviamente, por mera misericórdia ou apenas por falta de pontaria, nunca me acertou. Esta recordação, situada algures entre o dramático e o cómico, ainda hoje nos arranca gargalhadas quando a recordamos.

Por isso, diverti-me imenso ao descobrir que Meriem Bennani (Rabat, 1988) e eu talvez partilhássemos essa mesma experiência. Em entrevista a propósito da sua exposição individual For My Best Family na Fondazione Prada, em Milão, a artista faz referência ao “atirar de chinelos” materno ao referir a sua instalação site-specific Sole Crushing. A obra, criada em colaboração com o produtor musical Reda Senhaji, também conhecido como Cheb Runner, é uma descomunal instalação cinética com aproximadamente 190 espadrilles, chinelos coloridos, chinelos com pingentes e sandálias, todos arrumados em estruturas de madeira que lembram uma montanha-russa. Conectados através de um sistema pneumático, os sapatos colidem em vários elementos, produzindo uma composição musical caótica e rítmica. É como se ganhassem vida, interagindo entre si numa espécie de orquestra formidável. Quando entramos na instalação, a impressão inicial é quase inquietante. Mas, rapidamente, o que primeiro parece ser apenas cacofonia transforma-se em algo extremamente familiar e até ancestral. O público é absorvido por um ritmo coletivo, participando num fluxo sonoro que parece questionar a própria essência da vida e da comunidade. Tendo já explorado várias vezes o tema do movimento – quer num sentido mais lato, quer no contexto específico das relações humanas (por exemplo, a sua escultura Windy (2022) para o High Line de Nova Iorque, onde um tornado em constante turbilhão personifica o dinamismo implacável da cidade) -, Bennani cria aqui uma constelação de pulsações, onde cada visitante é convidado a descobrir o seu ritmo. O resultado é um domínio infinito de exploração, onde a arte permite refletir sobre a coletividade e a própria existência.

A exposição prolonga-se no segundo andar do Podium, onde um espaço cinematográfico próprio acolhe For Aicha, um notável filme artístico de 60 minutos, co-realizado com o seu colaborador de longa data Orian Barki, e produzido por Jason Coombs e John Michael Boling. Combinando documentário e animação 3D, o filme aprofunda o tema das relações familiares.

As personagens de For Aicha são animais antropomorfizados, opção que dota o filme de uma dimensão enternecedora, apesar do seu tema pesado. A narrativa acompanha Bouchra, cineasta marroquina de 35 anos que vive em Nova Iorque, à medida que escreve um filme que explora a sua relação com a mãe – em particular a influência da sua queerners na sua relação.

Propositadamente semiautobiográfico, o filme flutua entre Nova Iorque – o lugar da sua “família escolhida”, eternamente debaixo de chuva – e Marrocos, a terra soalheira da sua infância e família biológica, repleta de cenas de interação social.

O recurso a personagens animais confere-lhe tanto ternura como intensidade, como se o calor da sua representação contrapusesse a complexidade emocional da relação entre mãe e filha, criando quase uma alegoria da dinâmica familiar e do seu impacto nas nossas vidas. Um elemento especialmente marcante é o esforço de Bouchra para ultrapassar, recorrendo à arte, a distância existente desde que se revelou nove anos antes. O filme oscila entre momentos marcados por uma emoção profunda e uma alegria libertadora, elaborando uma narrativa verdadeiramente humana, apesar da sua forma animal.

Esta interação entre movimento, a realidade quotidiana e a narrativa visual experimental – reforçada por personagens animais antropomorfizados – cria uma emoção crescente, enquanto estimula sentimentos de oportunidade e ligação. À semelhança de uma orquestra onde cada instrumento encontra o seu lugar, Bennani combina magistralmente Sole Crushing e For Aicha, analisando o significado da família e da ligação humana de dois ângulos diferentes mas complementares: um deles coletivo e harmonioso, o outro íntimo, desenhando a evolução das relações pessoais.

Ao regressarmos à imagem de um chinelo voador – um gesto em suspenso entre a repreensão e o afeto, o caos e a brincadeira -, encontramos a essência desses vínculos nebulosos, ternos e imprevisíveis que Bennani capta tão magistralmente na sua obra. Em última análise, o artista parece sugerir que a identidade – como uma pantufa no ar ou uma nota numa orquestra – nunca é fixa, mas moldada permanentemente pelo movimento, apanhada entre a confusão e a harmonia, a distância e a proximidade, a individualidade e a pertença.

A exposição poderá ser visitada até dia 24 de fevereiro na Fondazione Prada, em Milão.

Orsola Vannocci Bonsi é uma produtora e consultora cultural que vive em Lisboa há oito anos. No seu trabalho, promove ligações através da sua pesquisa e dos projetos que ajuda a concretizar. Com experiência como diretora comercial e galerista em várias galerias de arte portuguesas, foi também gestora de projetos e diretora artística da FEA Lisboa, fundou o coletivo curatorial Da Luz Collective e contribuiu para a programação de festivais em Itália e Portugal.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)