O rigor de cada gracejo
Em sua costumeira elegância, Quintiliano compõe uma fórmula simples sobre o conceito de ironia: deve-se entender o contrário do que é dito. Tal elusiva postura busca os opostos nos semelhantes, complicando o simples — e, no entanto, acaba por promover justo uma implícita clareza, pois expõe o absurdo oculto nas convenções. Prática de ajuste social, a sátira destrói para construir. E como a sua dissimulada essência se encontra não nas palavras, mas nas circunstâncias onde são ditas, sua compreensão exige que o irónico e o espectador estejam de acordo em relação à natureza da realidade. Após a piada, haverá entre eles um elo tácito que expande o sentido da mensagem pois assimilada intuitivamente, ao além dos limites da linguagem.
No entanto, em sua inconcebível destruição de valores tradicionais, o espírito moderno alienou o indivíduo de tudo que o estruturava numa experiência comum. Arruinadas as grandes verdades que significavam a existência, também a ironia se desmotivou de corrigir um real fracturado, afastando-se da concretude: interessado, mas indiferente, o próprio irónico desconhece o verdadeiro sentido do que diz. Prefere a distração à clareza — permuta conceitos não para ser compreendido, mas justo para escapar de qualquer fixação: sua cínica ambiguidade esconde-o num eterno não-posicionamento. Seu valor advém da incompreensão da mensagem, pois tenciona sobretudo alimentar a própria autonomia, relativizando tudo salvo a si próprio. “Tudo que é genuíno e independente torna-se apenas espetáculo”, escreve Hegel: “meras aparências sob o poder e capricho do ego”.[1] Também o místico ri pois percebe o coração absurdo da vida, mas seu humor o catapulta na direção ao sagrado. O irónico, quando ascende, não vai ao encontro de nada salvo o vaidoso pedestal que o separa de tudo. Alcança, assim, o oposto da ironia clássica: reforça o estado de coisas, pois oculta as suas dinâmicas.
Tal derrotismo oscila-o entre auto-depreciação e auto-exaltação, pois no fundo sabe ser inteligente o bastante apenas para perceber a sua própria futilidade. Seu desfecho é compreender-se, também, como vão — seu contacto com o mundo não desenvolveu a sinceridade necessária à verdadeira auto-análise. Em segredo, anseia regressar à concretude da vida, mas receia abdicar de sua ilusória soberania. “Às vezes é um deus, às vezes um grão de areia”, escreve Kierkegaard. Entre tais flutuações, algo se mantém: o tédio.[2] Distantes de tudo, atualmente encontramo-nos neste paradoxal estado de mobilidade imóvel, impotência auto-imposta que simula movimento para reconfortar-se na inércia. A ironia é atitude cínica o bastante para ocultar-se a olhos vistos, permitindo-nos gracejar sem agir — caminhar em ironia é a forma mais efetiva de se manter parado. Nada mais pesa com um propósito capaz de despertar esperança no futuro: estamos fora da história.
Mas para Hegel a própria natureza da realidade é irónica, pois contrária a si: tudo é também o seu inverso. O intelecto que aborda o mundo sob a lógica da não-contradição apenas reduz a existência à pobre coerência de suas formas mentais. Já a ironia contempla os contrastes da existência sem tentar resolvê-los, pois satisfeita em sua insolúvel riqueza. Poderia ela transformar-se numa abordagem mais aberta ao estranho cerne da vida, superando tanto a ingenuidade de outrora quanto o ceticismo atual? Empregando sua maliciosa sagacidade para ministrar os mais doces enigmas, o temperamento irónico preencheria o real com um excesso de sentido. Tendo a incerteza como única convicção, sua sabedoria frustraria a postura utilitária.
Com texto e curadoria de Alexander Burenkov para a Temnikova & Kasela Gallery, a mostra Don’t Take It Too Seriously busca compreender como a arte não apenas explora a atitude irónica, mas sobretudo encontra alternativas existenciais dentro da ironia. Embora de contextos e temperamentos distintos, os seis artistas aqui representados conservam o mesmo interesse pelo implícito e paradoxal enquanto o prisma da cultura contemporânea.
Em sua série Board Room, Robertas Narkus reúne objetos banais e detritos diversos sobre cadeiras. Seus aglomerados babélicos de promíscua apatia, ou equilibrado colapso, equilibram caos e ordem para questionar o estado atual de nossa civilização. Pois ao ocupar com despojos industriais a cadeira, instrumento de repouso e símbolo de nossa superação das dinâmicas naturais, Robertas subverte-a na imagem do desperdício material e da exaustão produtiva — quem repousa agora são os resíduos excessivos da estrutura criada justo para garantir o nosso bem-estar, numa irónica inversão entre fins e meios. A tensão entre o zelo que devota aos arranjos e a desordem de sua aparência geral comenta tanto a fragilidade inerente aos nossos planos quanto o anseio de regressar ao conforto de outrora. Não à toa suas composições quase formam silhuetas humanas.
Também Anna Solal recolhe os resíduos de uma sociedade sufocada em sua própria produtividade, articulando-os em imagens cuja ironia critica tópicos atuais: telemóveis quebrados compõem satélites de vigilância camuflados pela inocente silhueta de pipas infantis. Detritos fragmentários são aqui disciplinados em impecáveis silhuetas e arranjos quase clássicos, revelando a harmonia lógica entre parte e todo — talvez devido à confiança na possibilidade de recuperarmos a clareza das formas, transformando o caos em redenção: em Forest Bird, utiliza solas de sapato em mecanismos voadores de sugestiva transcendência.
A nossa estranha proximidade com a tecnologia também interessa Johanna Ulfsak, que mediante a tecelagem captura uma paisagem natural reformulada pela inteligência virtual. O metálico bucolismo de Lorem Ipsum inquieta-nos pois em simultâneo doce e distante, como o sintético reflexo de algo antes tão central ao nosso imaginário. Poderia o artesanato resgatar o lustre original de nossos sonhos coletivos? E, no entanto, a prática das tecelãs, com sua destreza mecânica, calculismo e paciência, assemelha-se ao humor digital. Sob tais ambiguidades, entende-se a obra tanto como o canto de cisne de uma humanidade esforçada em reaver a miragem do que fomos quanto o acolher da mudança que, no entanto, é sobretudo uma versão atualizada de antigas práticas. São, todas, batalhas perdidas — as subtis turbulências da imagem sugerem a imperfeição de nossas ações, ou o colapso das fantasias delicadas o bastante para não sustentarem a própria exposição.
Em Bonbonnière, Agnes Scherer acumula símbolos de fertilidade que apontam a exuberância de uma riqueza porvir. A forma ovóide de seu ventre parece conservar todo o futuro, e, no entanto, quando espiamos por sua máscara pélvica, vemos apenas vazio. Desiludidos, amargamos a ironia de seu vestido que incha, trivial, ao vento. Também em sua pintura Small Psychostasis o equilíbrio cósmico é conservado pela leveza da ignorância — em suas figuras, a abertura ao íntimo aloja-se nas costas. Incapazes de se conhecerem a si ou ao outro, pois presas na precisão da balança, sofrem o que nós entendemos como benefício: contemplar o ventre da vida é também esvazia-lo, talvez não por sua inerente ausência de sentido, mas pela nossa incapacidade compreensiva, que pesa a inocência das coisas ocultas e impede a alma de transcender.
Em Far From Intelectual, Philipp Timischl ironiza a convergência de duas posturas mal compreendidas, na cultura moderna, como opostos: o culto ao corpo e o empenho intelectual. Vulgariza o ideal helénico numa irreverência visual que encontra o seu humor na sobreposição de signos díspares — seria a lapela do livro, alinhada à pélvis aberta, um falo ereto que se ergue em idolatria à transcendência? Tal escatológica fusão entre libido e intelecto é também articulada pelos aspectos formais da obra: o êxtase físico de sua gestualidade expressiva convive com um ecrã que reformula a figura mediante o intelecto puro da inteligência artificial, tensionando estilos para tanto relativizar, quanto reforçar, a originalidade da imagem pintada.
Se para Kierkegaard a ironia é justo a existência contrariando a essência, em e-deologies Joshua Citarella questiona a influência do ideal nacionalista num contexto de instabilidade social e identidades descartáveis. A variedade de suas bandeiras tanto reflete a atual exaltação de pequenas diferenças quanto questiona a solidez de tal elusiva dinâmica — a única constante para o indivíduo que anseia conhecer-se mediante o pertencimento coletivo é uma fluidez performática de temperamento irónico, que tanto transita entre categorias que acaba por embaralhá-las. O próprio artista permite-se permutar marcas identitárias de grupos diferentes, explorando talvez como a falta de rigor na composição de certos coletivos reforça, implicitamente, as suas latentes semelhanças.
O temperamento irónico manifesto pelas obras apresenta-nos o panorama atual de nossa fervorosa cautela, ou esperançosa desilusão. Sem dúvidas o seu escopo de conceitos e plasticidades contribui para a variedade de um real que parece querer despedaçar-se para depois, talvez, sintetizar-se em novas configurações. Seria então o bastante expor o nosso repertório temperamental, criticar estruturas de poder, lamentar nossa estreiteza sentimental ou confessar apatia política? A cada instante, em imperceptíveis movimentos, um novo mundo reformula-se da carcaça cósmica do antigo, permitindo-nos repensar os atributos de cada coisa. O princípio de cada pensamento é o templo sagrado de toda subversão — ali, o irónico ajoelha para visionar outros futuros. Para Aristóteles, o mundo move-se por amor ao divino. Apenas os mais impossíveis desejos conseguem vencer a inércia. Seria o amor o cerne da sã ironia? A irreverência do irónico Falstaff, escreve William Hazlitt, é “um transbordar do seu amor ao riso, e camaradagem; um respiro ao seu coração e sobre-júbilo consigo e com outros”.[3] O amante é justo quem abre o próprio íntimo para o amado, presença transformadora, ocupar. Portanto, o irónico, preenchido pelo mundo e amante da existência, seria como o ator que adora perder-se no papel para empatizar com estranhas perspectivas, numa humildade tingida de desejo que o lança para fora de si. Afinal de contas reservar julgamentos, escreve Fitzgerald, é uma forma de esperança infinita. Talvez então a ironia seja o mais otimista modelo: sua energia lúdica poderá expandir-se ao além do cinismo atual, impulsionando-nos para fora deste interstício onde tudo parece mover-se para conservar passividade.
Don’t Take It Too Seriously está patente na Temnikova & Kasela Gallery, em Tallinn, até dia 5 de maio.
[1] Hegel, G.W.F. Lectures on Aesthetics, Introduction, (iii) Irony. Disponível em: https://www.marxists.org/reference/archive/hegel/works/ae/
[2] Kierkegaard, Soren. (1992). On the Concept of Irony. Princeton University Press, trecho XIII 356.
[3] Hazlitt, William. Characters of Shakespeare’s Plays, Henry IV. Disponível em Project Gutenberg.