Top

Entrevista a Mariana Maia Rocha, autora da Capa do Mês

O corpo como mapa, a cidade como corpo. As superfícies das ruas, do piso, dos muros; as texturas da pele. A pesquisa acadêmica e plástica de Mariana Maia Rocha, artista de 24 anos nascida no Porto, perpassa pensamentos da arquitetura e da escultura para desbravar uma cartografia do afeto. Ao trabalhar com materiais e processos como látex, couro, resíduos vegetais e frottage, Mariana Maia Rocha procura no mundo, e no seu corpo performático, um mapeamento das arqueologias pessoais.

Julia Flamingo: Você está com três exposições em cartaz no momento? Vamos começar por elas!

Mariana Maia Rocha: Sim, é um mês cheio! Neste mês de fevereiro vão estar, no fundo, quatro exposições em que eu estou envolvida. Uma que é das mais importantes é no Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC), foi um convite da Ana Rito e das estudantes de curadoria de Coimbra. É coletiva, tem um monte de artistas desde a Paula Rego, o Jorge Pinheiro, a Marta Castelo, são imensos. Chama-se Enquanto Isso//Meanwhile.

Depois, participo numa em Vila Franca de Xira, na Galeria Municipal Jovem de Vila Franca de Xira, na Quinta da Piedade, que se chama Na Fragilidade do Que Persiste. E é uma exposição coletiva, com dois outros jovens artistas. Já não tão jovens como eu, tenho 24 anos, mas ainda jovens, a Jéssica Burrinha e o Eduardo Freitas. Nesta exposição, eu trabalho com peles de látex e resíduos que retiro de superfícies urbanas,

Estou também com uma exposição na COSSOUL, que é a Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul. Essa é individual e chama-se Diz-me quem és, dir-te-ei quem sou. É uma das exposições mais intimistas que já fiz.

E depois, no dia 22 de fevereiro, vou inaugurar uma coletiva, Le Jour il fait Nuit a convite do André Cepeda, na Galeria Kubik, no Porto. Aqui vou apresentar uma fotografia de grande formato.

JF: Que bom para você, cheio de coisas acontecendo. E você é tão nova! Há quanto tempo, mais ou menos, você vem expondo o seu trabalho?

MMR: O grande momento, na minha curta carreira, foi quando fui uma das dez artistas selecionadas para o CARPE – Prémio Arte Jovem da Fundação Millennium BCP, em 2023. A partir do momento em que recebi esse prémio, ganhei também o prémio Aquisição Millenium BCP e foi aí que fiquei pela primeira vez em coleções.

E, ao mesmo tempo, soube que tinha recebido também a Bolsa Novos Talentos 2023-2024 da Fundação Calouste Gulbenkian. E depois, no fim ano passado, face ao artigo que apresentei, ganhei uma bolsa de doutoramento para estudar no estrangeiro. Ainda não sei para onde vou, mas estou muito contente.

A minha formação é em pintura, apesar de, por vezes, dizerem que eu sou escultora, que sou fotógrafa, ou que sou o que sou, mas…primeiro de tudo eu acho que sou artista e, para mim, o meio não é definidor daquilo que eu sou. Eu sou artista plástica e trabalho com o que me apetece naquele momento trabalhar.

JF: Qual é a sua pesquisa de mestrado?

MMR: A minha investigação foca-se na ideia da ruína, na arte contemporânea e na ideia da pele. E também num processo que acontece na ciência, que é o processo de ecdise, onde os animais largam a sua pele, nomeadamente, as cobras. Essa pele, esse rastro, esse vestígio quase arqueológico, diria, de um ponto metafórico, interessa-me bastante.

E também, a minha grande questão, por vezes, é se eu fosse um animal de muda. Os animais de muda são esses animais que largam a sua pele, como a cobra, mas também há caranguejos, há vários animais. Como é que seria se eu deixasse esta minha pele? Ou seja, como é que seria se eu pudesse guardar todas estas peles que vão transportando a minha existência? Há a pele da infância, a pele da Mariana mais adulta, a pele da Mariana quando tinha 5 anos, quando tinha 10, quando tinha 15, ou seja, é um bocadinho esta ideia das várias peles metafóricas que nós vamos tendo ao longo da vida e eu questiono como é que seria se eu pudesse guardar essas peles todas.

E, por isso, eu trabalho sobre a ruína da cidade em si. Estudei arquitetura um ano na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, e acabou por ser um momento importante porque fez com que eu começasse a ver a cidade com outros olhos. Depois apaixonei-me por desenho e, então, no ano a seguir, fui para a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto também.

JF: E a ideia da memória, que perpassa tudo isso. Me parece que aquilo o que é doméstico está muito presente no seu trabalho. Mais do que a casa como espaço arquitetônico, a casa como lar. Quais são os objetos e as memórias que preenchem uma casa?

MMR: Sim…e isto também acaba por surgir um bocadinho quando estava a passar uma fase quase do luto da minha avó. Acho que a partir daí foi quando o meu trabalho começou a ser um bocadinho mais honesto comigo mesma. Interessei-me por um processo que é frottage, isto é em francês, mas em inglês chama-se por vezes rubbing, ainda que não seja exatamente a mesma coisa.

Eu comecei a fazer, por exemplo, frottage das roupas da minha avó, do meu avô, da família, ou seja, com o toque, comecei a gravar a memória que era a minha memória daqueles objetos e desse contacto que estou a ter com os objetos agora. Mas que era a memória que a minha família tinha com esses objetos, com essas roupas, essencialmente, mas também com cadeiras, mesas e tudo mais.

E, então, no fundo, tento captar memórias e guardar peles de pessoas que já cá não estão ou peles de tempos que não foram o meu, porque, se calhar, eu nem era nascida. Quase como na arqueologia, em que se tenta calmamente decifrar o que é que estará lá debaixo da terra. Eu tento, através do toque trazer essas memórias para o meu tempo e, depois tornar isso a minha prática artística. É sempre tudo muito assim, muito material, muito plástico, no seu sentido também matérico.

Um dos primeiros projetos surge mesmo na minha casa, onde começo a retirar peles de grande parte dos percursos por onde, por exemplo, a minha avó passava várias vezes. E fica quase uma ideia de cartografia, de cartografia-ferida, das feridas e cicatrizes desta arquitetura. Tudo começa na minha casa e depois extrapola para a cidade.

Uma outra questão é que muitas das minhas peças por vezes são efêmeras, muitas das peças eu sei que vão desaparecer não no período da exposição, espero eu, mas por vezes um mês, dois meses depois da exposição. Isso acontece com, por exemplo, resíduos vegetais, líquidos, musgos, sujidade das pedras da calçada, a ideia de pó, de cinza, pó de grafite, pó de carvão. É muito comum que passado uns meses as peças se vão deteriorando, mas isso não me incomoda. Aliás, a peça em si funciona deste modo, dura o tempo que achar que tem de durar.

Não sei, já falei muito.

JF: Você falou bastante mesmo, mas é muito bom porque não é tão comum que artistas – e muito menos tão jovens – tenham uma consciência tão grande da sua própria produção. Então eu acho que você, talvez também porque você tenha um trabalho acadêmico muito presente, criou um discurso muito claro sobre a sua pesquisa.

Para mim parece óbvio que algumas das suas obras tenham que ser efêmeras. Porque você está falando sobre a passagem do tempo. Você fala sobre duas coisas: tem as ruínas, que são as ruínas monumentais e que duram anos e gerações e que ficam para as próximas gerações, aquelas ruínas que são arquiteturas, monumentos. Mas tem as outras ruínas que não são os monumentos, mas que é a arqueologia do que fica de nós indivíduos, da nossa tão curta existência na terra. Os objetos, as lembranças, as memórias, os resquícios. As ruínas pessoais. Você fala de um lugar muito pessoal.

Você pode contar sobre a peça Até que a porta nos separe?

MMR: Quando eu estava em arquitetura, uma vez um professor disse uma coisa muito interessante: nunca ponham uma porta no fim de um corredor, coloquem uma janela. Porquê? Nos lares de idosos nunca colocam uma porta no fim de um corredor, porque senão as pessoas acham que estão mais próximas da morte do que propriamente estão. Ou seja, no fim de um corredor põem sempre uma janela, porque é esta a ideia, que podemos ver para lá.

Ou seja, uma porta é feita para não se ver o que está para o outro lado, certo? Mas se a porta for de látex, conseguimos ver parcialmente sombras do que está para o outro lado. A porta perde a sua função de porta, porque deixa de ser um casulo e passa a ser uma obra em que dá para ver o que está para lá.

Outro pormenor interessante é que o suporte desta porta, no chão, é de cimento. E tem um negativo de um tapete gravado nesse cimento. Assim como a própria maneta da porta, ou o puxador, também o que nós vemos é o negativo desse puxador. E é esta ideia de até que a porta nos separe, é quase como nos casamentos em que dizem “até que a morte nos separe”. A dualidade. No fundo, a morte, neste caso, o meu contato com a morte, não me separou da minha prática artística, separou-me de um ente querido, não é? Mas uniu-me à minha prática artística.

O meu trabalho está muito mais consistente desde esse momento, porque eu percebi que há coisas muito mais importantes do que aqueles problemas que nós achamos que temos na vida. Acho que o que temos de celebrar é a própria existência, ainda que curta seja.

JF: Eu gostei, eu achei esta peça muito interessante, porque, para mim, o que também fica no seu trabalho é a ausência. Os vestígios são sempre de algo que passou, de algo que já foi.

A outra coisa que fica muito evidente no seu trabalho é a textura. Tem um trabalho, inclusive, que é um pouco grotesco, é um látex um pouco grotesco. Tem a textura da rua, mesmo essa pele da rua, depois tem essa pele de cobra que você coloca em você, nesse trabalho um pouco mais performativo. A textura está sempre lá, a matéria está sempre lá, essa epiderme.

MMR: Exato! E esta ideia também do próprio corpo como se fosse um mapa. Não só a cidade como um mapa, mas o próprio corpo como se fosse um mapa. Muito sutil de encontrar estas fronteiras entre todo o trabalho e ver a tal cidade como um corpo em si. E ver o corpo até como uma cidade em si.

JF: Uma última coisa: quem são suas referências?

Eu tenho algumas referências dependendo dos trabalhos, mas há uma referência que eu tenho gostado muito que é a Valie Export. Pelo modo como ela interage com a cidade, como olha o corpo, como vê a cidade.

Depois, claro, quando comecei no látex, a Eva Hesse é uma artista intemporal no campo do látex. A Helena Almeida é uma artista importantíssima no modo como começo a ver o corpo e a ligação da matéria com o corpo. E depois tenho uma referência que é absolutamente intemporal, que me acompanha já desde a arquitetura, que é o Piranesi, o eterno Piranesi. Pode parecer muito distante, mas eu acho que ele já há muito falava de coisas que eu trabalho. A ideia do fragmento, da memória, dos mapas. É perfeito.

E também houve um momento que eu andava apaixonada pelo trabalho de Francis Alÿs. Ele agora está com uma exposição absolutamente incrível em Serralves, foi a mesma que teve no Barbican, em Londres. E há muitos outros artistas importantes para o meu processo criativo, o Erwin Wurm e as esculturas de um minuto, Berlinde de Bruyckere, o Rui Chafes, o Pedro Cabrita Reis, por exemplo.

Clique aqui para visitar o website da artista.

Julia Flamingo é jornalista e pesquisadora especializada em arte contemporânea, nascida em São Paulo. É fundadora da plataforma digital Bigorna (@bigorna_art), que tem como missão usar linguagem simples e mediação para aproximar públicos da arte contemporânea. É redatora da rede global de curadores de arte Arpool.xyz, e curadora e escritora do grupo português Cultural Affairs. Julia foi jornalista de arte e crítica da revista Veja São Paulo e contribuiu para celebrados projetos culturais como o 4Cs, financiado pelo Programa Europa Criativa, SP-Arte e Bienal de São Paulo. É formada em jornalismo pela Universidade Mackenzie e em história pela PUC-SP, e tem mestrado em Estudos Culturais na Universidade Católica Portuguesa de Lisboa.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)