Bem-vindo à terra da alegria, de João Marques
A matéria vale por aquilo que é e por aquilo que pode representar e transformar.
A matéria é um elemento químico e físico – biológico, sintético, concreto, imaginado; mineral, vegetal, orgânico – que encerra um potencial plástico por defeito. No míster ilimitado da arte, o imaculado mármore branco é tão belo e sedutor na sua plasticidade quanto um punhado de terra calcinada; a viscosidade brilhante e encantadora do óleo, tão desafiante e fértil quanto uma laje de betão. A matéria é o devir do Tempo e da Natureza, seja ela qual for, e foi este o maior triunfo e contributo conceptual da arte povera para a arte: reconhecer que a banalidade da matéria que se nos apresenta diante do nosso fugaz quotidiano é catalisadora da transformação, modelação e, acima de tudo, da discursividade política, social, económica e ambiental de que se reveste. Rever e voltar a refletir sobre a matéria, livre de preconceções e dentro de um quadro profundamente radical, em consonância com o seu tempo – é daí que nasce a exegese da arte povera.
E, deste modo, se a arte povera parece retirar o valor ou a importância económica da matéria da equação, acrescenta-lhe, todavia, um outro, por ventura mais simbólico, mais presente, premente e politicamente engajado – o da omnipotência plástica de tudo o que nos rodeia, o devir permanente do quotidiano, da vida, libertando o artista para explorar toda a matéria e toda a tecnologia ao seu alcance, próxima de cada espectador.
É daí que vem o caráter revolucionário e libertador da arte povera, que perdura e resiste ainda hoje.
A decetiva associação à utilização dos materiais ditos “pobres” é algo mal contado ou, de forma benigna, incompleto – algo que se queda pela estética epidérmica dos objetos, incapaz de compreender a ironia de um movimento que se pugnou por uma nova arte e um novo enquadramento institucional do sistema que a comporta. Deste modo, a arte tornar-se-ia mais próxima, mais humana, mais elementar, despojada de qualquer aura idealista, a favor de um realismo que se julga(va) necessário. Porque a arte de então era um excesso teórico, que ameaçava negar a experiência fenomenológica da matéria e da energia metamórfica. O que a arte povera fez foi, então, rebelar-se contra essa tendência.
Em Bem-vindos à terra da alegria, de João Marques, revemos a história e o legado desta arte que se fez de terra e da terra, do fogo e para o fogo. Marques recupera a supremacia da matéria e das suas energias, tal como o curador da exposição, João Silvério, aponta, fazendo menção à arte povera e à “memória da história da arte” na obra do artista.
Porque em Bem-vindos à terra da alegria é a terra que fala – a terra calcinada pelo fogo, composta de cinzas, misturada com carvão, retirada de um contexto de desolação e trabalhada sobre tela, contanto a estória de um local remoto, distante no tempo, um lugar que é mental, psicológico, onírico, que só o artista reconhece. É, portanto, uma paisagem feita de muitas umbras e penumbras, matizada de negro, imprecisa, mais cultural que natural, porque se transforma e se conforma, se mistura e destaca nessa indefinível imagem que são as paisagens.
A terra queimada, recolhida pelo artista, não sabemos exatamente as circunstâncias em que foram recolhidas. Queimadas controladas do restolho recolhido nos campos, de rebentos cortados das oliveiras? O que resta de um violento fogo florestal, fenómeno cada vez mais frequente? O fogo é hipnose, é sedução, idolatria; é respeito e “complexo” prometeico; é “devaneio”; é “pré-história”; sexualização. Fogo é idealização, “pureza”, “combustão espontânea”. Há algo de psicanalítico nesta exposição, no que antecede as cinzas e o carvão, tão bem sintetizado por Gaston Bachelard em A Psicanálise do Fogo: “Tomar o fogo ou dar-se ao fogo, aniquilar ou aniquilar-se, seguir o complexo de Prometeu ou o complexo de Empédocles, tal é a operação psicológica, que transforma todos os valores, que mostra também a discórdia dos valores.” (Bachelard, 1994: 164)
O breu envolve as telas e os desenhos. Mesmo quando o assunto é um clarão de fogueira, há um manto escuro que envolve a exposição, estranhamente ampliada pela arquitetura do espaço – a cisterna da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, antigo Convento de São Francisco. Sob esse manto, há pistas, se assim as quisermos entender, escondidas pelas manchas de carvão, pastel, cinzas e terra: palavras, objetos, símbolos.
Se Ruy Belo disse Despeço-me da terra da alegria, Marques convida-nos antes a entrar, numa ironia linguística, nestes territórios lúgubres que nos devolvem uma reflexão sobre a vida, mas acima de tudo sobre a morte – esse fenómeno muito humano, demasiado humano, que queremos adiar eternamente, encerrando-nos num ciclo de presentismo perpétuo. À terra ninguém quer ser entregue, da terra todos querem partir. Esquecem os seres que a morte está sempre presente, que também ela é manifestação de uma energia, também ela é matéria.
Há algo de profundamente precoce nesta exposição, por um tão jovem artista. Um descaramento que descodifica tão depressa o significado da vida e a meta da morte. E tão estranho, este pensamento, tão raro. Diria Belo, sempre tão desarmante com os seus versos, “pensando se antecipa a própria morte”. Mas a arte é uma coisa híbrida, que oscila entre o pensamento e o transe da prática que o suprime.
Recorda-se a série A fogueira das bruxas e Natureza-Morta III e I, que exalam força, irradiam uma energia obscura, magnetizante e nos relembram as oscilações e balanços da vida. A parábola da Natureza existe como existiu na sua exposição anterior, Divina Terra (2024), mas aqui é a condição natural da humanidade, que nasce e… morre, inevitavelmente, inexoravelmente, sobre a terra e um fogo-fátuo que dança sobre ela.
Bem-vindos à terra da alegria, de João Marques, com a curadoria de João Silvério, está patente na Cisterna da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa até 14 de fevereiro.
Referência
Bachelard, G. (1994). A Psicanálise do Fogo. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda.