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Solve et Coagvla, na galeria Sá da Costa

Deambulo pela exposição de JOH, Solve et Coagvla, na galeria Sá da Costa, e confronto-me com a primeira tela, Avalon.

O pintor amarra-nos aos títulos que dá às suas pinturas. Enleio-me num jogo que enceto, entre os nomes dados às obras e as próprias formas que elas oferecem. Logo, nesse início dá-se um confronto, uma fractura. Os nomes Wabi Sabi, Magma, Hocus Pocus, Clepsidra, Stabat, palpitam e ressoam nas sonoridades poéticas dos títulos, e compreendem uma realidade própria, distante, e autónoma.

A descontinuidade, a suspensão, também se origina, e é dada a conhecer, pela própria ideia de pintura objecto que emerge, se densifica e presentifica como forma escultórica. Porém, ela posiciona-se, e é apresentada sobre a parede. Para mim não há qualquer dúvida que se trata de pintura, no entanto, enleva a uma ambiguidade plástica que posso compreender, e que a situa no lugar incerto, entre a pintura e a escultura. Talvez retábulo? Destituído da função sagrada, de um “estar por detrás do altar”, no entanto compreendida pela mesma tensão, no que é dado ver no ato, no sulco da superfície densa, no suporte de madeira.

Numa mesma obra podemos ver propriedades pictóricas e propriedades escultóricas. Estava a pensar na obra de Frank Stella e a sua Empress of India (1969), fulgurosa, rectilínea, e que se desflora em diferentes sentidos, enaltecendo tanto as qualidades lineares quanto o fundo, plano, espesso e afirmativo.

Imagino igualmente JOH, Jorge Humberto, imerso na incumbência do gesto firme, automatizado, despejando sobre o suporte hirto, a finura do dripping. Num traçado a óleo, que é desferido, mas nem sempre sobre um plano liso. Em gestos mecânicos. O silêncio instiga as formas, e as sombras deixam a tinta penetrar no fundo dos sulcos.

Continuo a lembrar-me de Stella[1]. As linhas estão lá, paralelas, rectiformes, subtis, a desvendar os valores da geometria, da abstracção e da arte que ocupou boa parte do século XX, conglobada pelo modernismo, e depois por essencialismos que assistimos em artistas que conformaram os pressupostos reducionistas e minimalistas.

Na obra Skop, de JOH, assisto a uma forma, ou grupo de formas, que saem do suporte bidimensional. Com a aparência de cubos, ou de uma cidadela, compreendida por um pequeno aglomerado de casas com as suas janelas sombrias, fazem-me procurar a configuração arquitectónica mais estável. Tento aquiescer a vista, descansar. Porém, sem sucesso aparente. O estímulo é conflituante, revelando-me mais uma ambiguidade, no seio das representações impossíveis.

Outros estímulos perceptivos, ao mesmo tempo desafiantes, configuram-se no díptico Gestalt 2. Recordam-me os quadros coloridos e recortados, Mach II e Lapse, que Kenneth Noland nos presenteou em 1964 e 1976. As duas pinturas de JOH aparentam contrariar a propriedade plana da parede que as sustenta. A sua configuração conjunta remete-me para um cubo que sobressai, e em que duas faces ostentam formas ovulares, como dois olhos que nos perscrutam.

Existe também, na obra exposta de JOH, qualquer coisa de xamânico, ritualístico e mágico no gestos, e que o anfitrião da exposição, José Sousa Machado, soube tão bem detectar e aproveitar no seu texto sobre a exposição: Os conhecedores dos desenhos.

Sousa Machado enfatiza a propriedade linear e ritualística na obra de JOH comparando-a aos desenhos de areia, sona, revelados pelo povo Tshokwe, residente nas províncias do Nordeste de Angola. Neles Machado encontrou parentescos processuais com as pinturas de JOH.

Sobre esses desenhos sona Machado acrescenta: “Lendas, canções, fábulas, trechos de literatura oral, adivinhas ou simples charadas vão sendo relatados durante a execução dos desenhos, constituindo o entrelaçado mitográfico da sua estética figurativa, através da qual a cultura ancestral do povo Quioco é preservada”.

O entretecimento, o entrelaçamento, a trama, podem ser reconhecidos nas obras de JOH, “salvaguardadas as devidas diferenças históricas, culturais e socio-económicas”, como nos diz Sousa Machado.

O que nos fica é o entrosamento dos filamentos singelos, uma dança mágica de linhas, por um lado ondulantes, por outro, rectilíneas, sobre a matéria forte, homogénea e densa. Uma manifestação controlada de pintura que se reveste do reconhecimento greenberguiano da sua própria matéria, do seu suporte, da indagação da mono e da policromia.

O jogo, de pinturas, alterna entre quadros de formas recortadas e rectangulares. Existem, como caligrafias, configurações que se entrecruzam, como é dado observar na obra Clepsidra, na obra Stratos, ou em Stabat. Ou em discos circulares, como Proton, FM e Proton 2, estes reveladores da técnica de dripping, irrepreensível em JOH.

A exposição está patente na galeria Sá da Costa até dia 22 de fevereiro de 2025.

 

[1] Em The Marriage of Reason and Squalor, II. 1959, ou ainda Turkish Mambo, 1967

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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