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Entre performance e site-specific: Perdícia na Associação Alfaia

Por estes dias, pode sentar-se a uma mesa, por exemplo, do restaurante Bocage[1], em Loulé, e ter o almoço servido sobre a habitual toalha de papel. Esta, porém, ao contrário do que é costume, pode surgir desenhada a linhas azuis que descrevem imagens de flores, ramos, estames, silhuetas de pétalas. A refeição terá o acrescento da beleza, a arte interferirá no quotidiano de quem, por exemplo, nem tenha por hábito visitar galerias ou museus. Em vez de se chegar a uma toalha de papel em branco, que convide a rabiscá-la, encontrar-se-á uma série de rabiscos a convidar a outros, instalados já, mas em espera, em desafio. Inverte-se com isso uma determinada ordem da refeição: as toalhas de papel riscadas ao compasso de uma conversa ou de um tédio apresentam-se enfeitadas, suscitam a curiosidade desde o momento em que o comensal se senta. Quem tenha por hábito rabiscar o papel sobre o qual se dispõem pratos, jarros e travessas, poderá sentir-se mais à vontade para os rabiscos, lesados pela ausência da brancura que lhes daria livre curso ao movimento da mão, ou interpelados a interagir com os traços antecipadamente dispostos; aqueles mais avessos à rabiscagem poderão ver-se convidados à criação, ou incomodados pela interferência das linhas azuis sobre o que todos os dias esperam ver como a brancura do papel. Estas linhas desenhadas (em perfis finos que ecoam grafismos de Ana Hatherly, ou, mais ainda, o herbário de Lourdes Castro) lembram o tempo da perdícia, a existência de momentos que escapam à lida útil do negócio dos dias: representam, isso sim, o ócio, o que não tem uma utilidade inscrita na coluna do lucro, da finança, da corrida horária.

A intrusão dos rabiscos nas toalhas brancas – que, afinal, são desenhos serigrafados sobre as toalhas de papel cedidas pelos restaurantes que aceitaram o desafio da Alfaia, através da curadora Filipa da Rocha Nunes e da artista Sara Mealha (n. 1995). Uma vez ornamentado, o papel foi devolvido aos restaurantes e continua a servir o seu higiénico e protetor propósito prandial. É uma das ações implicadas na exposição Perdícia, que abre ao público até meados de março naquela galeria de Loulé e dá o pontapé de saída para a programação de 2025/2026. Dar-lhe-á também o mote? É que conflui em Perdícia uma série de ideias que a Alfaia acolhe como relevantes para a ação da arte. Desde logo, a articulação entre artistas cujo trabalho teve, nalgum momento, ligação à associação louletana; depois, a insistência na relação entre a arte apresentada dentro do espaço da galeria e a eliminação das fronteiras espaciais ou usuais (a arte liquefaz-se, derrama-se, por assim dizer, contorna fronteiras consolidadas e questiona os lugares); por fim, e na razão desta supressão dos limites físicos, a descoberta ou a sugestão de traços que unem pessoas e lugares inusitados em torno da ideia da beleza, do prazer sem preço da arte.

Existe uma afirmação contrária ao valor de mercado, quando assim se desperdiçam toalhas de papel artístico em mesas de restaurante. Mas parece assomar igualmente uma ideia acerca do desperdício da sociedade de consumo (as toalhas de papel que, depois das refeições, terão o destino comum da lixeira): a waste-land, terra inútil, desperdiçada e estéril, teve início num impulso de beleza, na vontade de contacto, no desejo insuspeito da arte. A ação de oferecer a arte em sacrifício do consumo (que contraria tendências artísticas do recurso ao desperdício para a criação de arte, como em Vik Muniz ou Thomas Hirschhorn, para não referir a anterioridade de Duchamp) convida a questionar o que é, afinal, o desperdício, o enjeitado na sociedade de consumo. Aliás, dado o título da exposição/ação, a negação do conceito de des-perdício tem rosto feminino: retirado o prefixo negativo, feminilizado o nome, Perdícia autonomiza-se, ganha corpo, ganha cor, ganha o movimento da interação.

As toalhas serigrafadas com os desenhos de Sara Mealha não são o fim e o começo de Perdícia. Literalmente sobre as paredes da Alfaia, a artista desenhou e preencheu letras gigantescas, coloriu o espaço (que reduziu, com cortinas, a cerca de metade da área), transformou o lugar. A exposição, que através das toalhas rabiscadas escoou para fora da galeria, teima, afinal, não só na imobilidade como na efemeridade daquilo que se instala: é uma obra site-specific? Ou uma performance que se afirma? As cores vivas das letras (ou de porções de letras, pois ocupam com a tinta do chão ao teto sem que todas se tornem completas) apresentam-se como potenciais portais que, afinal, abrem o espaço em vez de o circunscreverem: durante a inauguração, vários visitantes (secundados pela artista e pela curadora) se colocaram junto das formas pintadas nas paredes como se estivessem a escalar um obstáculo tridimensional, ou a atravessar um limiar para a inexistente profundidade da parede: assim se transformam muros em cortinas diáfanas, seriedade em brincadeira, rigidez em mundo fluído.

O percurso de Sara Mealha desde 2017, ano em que concluiu Pintura na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, tem sido feito de várias exposições, sobretudo dentro de Portugal. Em 2024, a sua internacionalização foi impulsionada pelo convite da EGEAC (Galerias Municipais de Lisboa) para uma representação “não comercial” (um “project room”) na feira ARCO em Madrid. À luz de Perdícia, faz sentido a não comercialização da sua obra e a persistência da arte num mundo sobretudo dominado pela lógica do lucro e da transferência monetária. Há um desígnio utópico numa atitude que preza o tempo perdido, o lugar que, por modificações de escala, se interroga enquanto espaço sisudo, o jogo que se faz com atores que por norma se ausentam do mundo da arte (quem almoça nos restaurantes do centro de uma cidade, por exemplo). É um desígnio que assume a fragilidade do efémero, do inconstante, mesmo do imprevisível – persistir em apostas semelhantes às de Sara Mealha (vem-me à ideia a irreverência formal de Tomás Cunha Ferreira, que ali se mostrou no começo do Verão passado, ou obras da Oficina Arara, também ali expostas, ou o conceito subjacente à realização de oficinas artísticas) poderá manter na Alfaia o modo irrequieto da questionação, que parece fazer parte fundamental do seu projeto artístico e comunitário.

 

[1] Outras casas de restauração em Loulé aderiram à iniciativa: Flor da Praça, O Pescador, Retiro dos Arcos.

Ana Isabel Soares (n. 1970) é doutorada em Teoria da Literatura (FLULisboa, 2003) e ensina desde 1996 na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UAlgarve). Integrou a equipa de fundadores da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Interessa-se por literatura, por artes plásticas e por cinema. Escreve, traduz e publica em revistas portuguesas e internacionais. É membro do Centro de Investigação em Artes e Comunicação.

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