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O Celeiro Air acolhe Pedro Valdez Cardoso e Vítor Serrano em residência que culmina na exposição Playlist na Casa d’Avenida em Setúbal

Uma residência artística implica uma mudança de lugar. Quando em residência, um artista, estando fora do contexto que lhe é familiar, reflecte, repensa e questiona o seu trabalho e o seu modo de fazer. Uma residência é um lugar de encontro, diálogo, partilha e troca, entre artistas, curadores, o público e o próprio lugar onde acontece. O artista confronta-se com um novo ambiente para desenvolver o seu trabalho, uma experiência que acrescenta algo à sua prática. Ao mesmo tempo, pressupõe-se que algo seja deixado após a sua passagem por aquele lugar, algo físico ou do domínio da memória.

Localizado no Parque Natural da Serra da Arrábida, em frente a uma das maiores pedreiras de Portugal, o Celeiro Air, antigo atelier de um pintor e antes celeiro, integra uma quinta com olivais e uma agrofloresta e é o sítio onde hoje têm lugar residências artísticas. Promovendo um diálogo entre arte, ambiente e educação esta residência, organizada por Mariana Viegas, promove ligações entre produção, trabalho e sustentabilidade, valores enraizados na história do próprio lugar. Acolhe projetos que envolvem questões ambientais e a comunidade local, numa lógica de partilha deste contexto único.

“Existe uma ideia de unidade entre geografias, cidade e campo, de unidade entre isolamento e comunidade e entre cultura e agricultura”, diz-nos Mariana Viegas. Afastado do contexto citadino, apesar de perto dele, o Celeiro Air propõe um retorno à ligação emocional inata que existe entre seres humanos e a natureza – de que fala Edward Wilson no seu livro Biophilia –, e que se tem vindo a deteriorar e, até, a se tornar dominadora, no sentido em que o homem se tem vindo a impor sobre a natureza de um modo violento, extrativista, colonizador e de grande desrespeito. Ao mesmo tempo, propõe um olhar para o outro como seu par num sentido colectivo de comunidade, partilha e troca. O reencontro desta conexão conduzirá a um modo de vida mais sustentável, ecológico e humanamente mais respeitador. Tudo isto se relaciona com uma necessária desaceleração e consequente conexão com o tempo presente possível neste lugar.

Durante um período de oito semanas, sugere-se aos artistas residentes um envolvimento profundo com o contexto e a comunidade locais e a organização de dias abertos e oficinas. O trabalho artístico é acompanhado por curadores e levado às Universidades, nomeadamente a Universidade Nova de Lisboa, onde os artistas dão a conhecer aos alunos do departamento de História da Arte o seu trabalho e a sua experiência na Serra da Arrábida e os alunos são convidados a participar nas oficinas e dias abertos implementados pelos artistas.

Para além do Instituto de História de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, o Celeiro Air conta com o apoio da DGArtes e é parceiro do DICUL Divisão de Cultura e Património da Câmara Municipal de Setúbal e de diversos espaços na região de Setúbal e Palmela dos quais os artistas residentes podem usufruir, tais como a Casa d’Avenida, a Gráfica, centro de criação artística e do Down Town Palmela, lugar onde existem oficinas de cerâmica, serigrafia, serralharia e carpintaria.

Como primeira residência, o Celeiro Air acolheu a dupla Landra, Sara Rodrigues e Rodrigo Camacho, cuja prática e pesquisa procuram uma vida ambientalmente ética. Rui Horta Pereira foi o segundo artista em residência, período durante o qual explorou matérias existentes na quinta. “A Materia” remete “para um sentimento de origem com a mãe terra/mãe natureza, é convocada aqui através de uma dinâmica processual de recuperação e reconversão de matérias obsoletas e encontradas, (…) outorgando-lhes novos sentidos e possibilidades de vida”, como escreve Vanessa Badagliacca na folha de sala da exposição Ditongo[1].

A terceira residência aconteceu no Outono do ano passado, contou com o acompanhamento de Margarida Brito Alves e Leonor Lloret e integrou a dupla Pedro Valdez Cardoso e Vítor Serrano. Sendo a primeira vez que trabalharam juntos e em formato de residência, os dois artistas encontraram a linguagem como denominador comum a ambas as práticas bastante distintas. A música acompanhou toda a sua estadia no Celeiro Air, sendo um elemento fundamental de partilha entre ambos. No dia aberto, convidaram o público a bordar frases retiradas da playlist que ambos criaram em fragmentos têxteis, num formato de oficina de criação comunitária. Fotografias, desenhos, frases, máscaras, pequenas instalações escultóricas concebidas a partir dos vários objectos encontrados no estúdio encontram raízes na cultura urbana punk ou contracultura, própria do trabalho dos artistas, e integram o trabalho desenvolvido pela dupla.

A residência culminou numa exposição na Casa d’Avenida em Setúbal. Um project room cujo título Playlist remete para o trabalho desenvolvido durante a residência sem que a exposição revele, intencionalmente, o que foi feito nesse período. Os bonés com as iniciais de ambos os artistas pendurados à entrada da exposição sugerem os DJs ausentes dessa playlist. A Casa d’Avenida, edifício histórico, apresenta características singulares de elevado valor. Os pavimentos e as ombreiras das portas inclinados revelam os acontecimentos presenciados por aqueles espaços. Pedro Valdez Cardoso e Vítor Serrano encontraram aí um ponto de partida para a instalação que conceberam para uma das salas da Casa. Escoras distribuídas pelo espaço seguram o tecto que ameaça ruir. No entanto, entre os dois, são colocadas peças de cerâmica cuja fragilidade contrasta com a tensão transmitida pelas escoras. Nelas inscreveram citações como “pleasure is everything”, “waking the witch”, “I float alone”, “where dreams go to die”, “I am invisible”, “forever young”, “fabulous muscles”, “all we ever wanted was everything”, “loud places”, “take me home”, que foram retiradas da playlist que deu nome à exposição. As peças de cerâmica foram produzidas na última olaria existente em Setúbal, região que em tempos teve uma intensa actividade relacionada com a extracção de barro, sendo posteriormente intervencionadas por ambos os artistas. Todas as peças escolhidas são utilitárias, terrinas, pratos, taças, jarras, remetendo para o imaginário doméstico da habitação que a Casa d’Avenida em tempos foi.

Esta exposição foi pensada especificamente para o espaço da Casa, sem revelar o trabalho desenvolvido pela dupla de artistas durante a residência no Celeiro Air. Neste sentido, uma fanzine que, nas palavras de Pedro Valdez Cardoso, “reproduz o nosso processo de trabalho e vivência durante a residência”, foi lançada como testemunho e peça que é parte integrante da residência e um complemento à exposição. Esta reúne fragmentos do processo, imagens do espaço de atelier e do dia aberto, dos animais que habitam a quinta, centopeias, bichos de conta, dos animais de estimação dos artistas, dos locais por onde passaram e que estão intimamente ligados ao trabalho desenvolvido, algumas peças concebidas durante o período de residência, múltiplos, entre outros.

Uma oficina de criação comunitária, uma exposição, uma fanzine e a partilha da sua experiência em residência e das suas práticas artísticas individuais junto de alunos universitários, marcam a passagem de Pedro Valdez Cardoso e Vítor Serrano pelo Celeiro Air, pela região de Setúbal, pelo Parque Natural da Serra da Arrábida. Uma experiência e um corpo de trabalho que resultam de uma partilha e do desafio de trabalhar em dupla fora de um contexto familiar, perante novos públicos, novos intervenientes, um novo ambiente. Uma generosidade recíproca entre quem chega e quem está.

Ao mesmo tempo, encontramos na Casa d’Avenida a exposição a_riscar que reúne o trabalho desenvolvido por Ana Caetano e Katie Lagast durante uma residência na Viarco – Fábrica Portuguesa de Lápis em São João da Madeira. Segundo João Silvério no texto que acompanha a exposição, o desenho estreitamente ligado ao gesto e ao movimento do corpo, é uma prática fundamental no trabalho de ambas as artistas. Ana Caetano utiliza-o num sentido performativo, enquanto Katie Lagast explora detalhes do espaço urbano, um exercício evidentemente relacionado com a memória.

Numa outra sala, Mónica Capucho apresenta Concrete Reality. O texto de Luísa Santos sugere que a artista “coloca o concretismo ao lado da realidade, uma relação impossível na definição de arte concreta.” A exposição questiona relações e assunções da história de arte através das várias peças distribuídas pelas salas da Casa d’Avenida.

As três exposições podem ser visitadas até fevereiro na Casa d’Avenida em Setúbal.

 

 

[1] Disponível em https://files.cargocollective.com/c1691165/Folhas-de-Sala.pdf

Joana Duarte (Lisboa, 1988), arquiteta e curadora, vive e trabalha em Lisboa. Concluiu o mestrado integrado em arquitetura na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa em 2011, frequentou a Technical University of Eindhoven na Holanda e efetuou o estágio profissional em Xangai, China. Colaborou com vários arquitetos e artistas nacionais e internacionais desenvolvendo uma prática entre arquitetura e arte. Em 2018, funda atelier próprio, conclui a pós-graduação em curadoria de arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e começa a colaborar com a revista Umbigo.

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