Arcádia devastada
Sobe da Terra ao Céu e daí regressa à Terra
e receba a força das coisas superiores e inferiores.
(Hermes Trimegisto, A Tábua de Esmeralda)
As palavras, escreve Edmund Burke, parecem afetar-nos de forma mais considerável que as imagens pintadas.[1] Seu impacto não é representativo — são símbolos cuja distância do sensível permite abordar conceitos gerais e ideias abstratas sem correr o risco de reduzi-los à particularidade da experiência, conservando sua potência. Esta imprecisão, própria da poesia, matiza todos os contornos numa evocativa ambiguidade interdita às artes plásticas. Pois a poesia está ao além da representação: não descreve, mas substitui o real. Típica do século das luzes e seu rigor taxonómico, teorias como a de Burke foram questionadas na atmosfera romântica, mais interessada em sínteses interdisciplinares que libertassem as artes plásticas da imitação visual.
Ao longo de sua carreira, Henry Fuseli pintou inúmeras cenas literárias de Shakespeare, Milton e Chaucer. Tencionava não ilustrar a poesia, mas tornar a pintura mais poética, sublimando a sua plasticidade formal numa visualidade ao além do sensível, mais ambígua e metafórica.[2] Em Perpetual Motion Machine, Pedro Moreira também ensaia semelhantes relações. Sua mitopoesia apocalíptica, onde quatro criaturas tripplesapiens — encarnando os ideais Verdade, Neutralidade, Caos e Ordem — habitam a realidade paralela Domain, é aqui trabalhada tanto como literatura quanto como arte plástica. Numa livre apropriação não distante do pastiche, articula uma multitude de referências sobretudo filosóficas, esotéricas e teológicas para alegorizar certas concepções canónicas da metafísica. Embora de enredo autêntico com grandes acertos, por vezes a narrativa apresenta-se mais como uma colagem de aforismos e símbolos sem grande digestão, conservando em demasia o seu estado original e realizando apenas parcialmente a visão de uma cosmologia própria. De facto, a convergência fragmentária é uma das práticas mais comuns da cultura contemporânea, já descrente da coesa composição clássica. Esta tensão entre a síntese e o colapso, o antigo e atual, o literal e o abstrato também perpassa a obra de Pedro.
Não obstante o caráter mais expositivo nas dinâmicas dos tripplesapiens, o temperamento abstrato da narrativa permite-nos devanear sobre a natureza de sua realidade. Desde 0 mundo astral pausado entre a morte e a ressurreição onde resíduos espirituais se relacionam em absoluta ignorância até o nosso próprio planeta num estágio pós-apocalíptico habitado por misteriosas formas de vida, a ambiguidade de Domain oferta-nos múltiplas interpretações. E, embora sua história seja narrada num realismo literário em terceira pessoa, olho divino todo sapiente que nos relata os acontecimentos, suas esculturas foram criadas — é-nos dito na história — pela estranha subjetividade dos tripplesapiens, entes elusivos de relação quase nula connosco. Fecunda oportunidade, portanto, para se esvaziar da tradição artística humana e ponderar sobre a possível expressividade de outras criaturas, criando uma nova iconografia que questione o nosso entendimento artístico. Poderia a abstração de sua narrativa literária, repleta de estranhas criaturas de argila e sublimes arquiteturas, evocar em suas esculturas algo similar à pintura de Fuseli, que buscava na metáfora poética uma renovação do nosso repertório visual? Suas obras, entretanto, apostam em iterações tradicionais de signos canónicos da iconografia humana.
Como poderiam tais criaturas expressarem-se mediante idiossincrasias típicas de nossa cultura? Para seus corpos fugazes, constroem armaduras de anatomia humana com elmo de face solar, mesmo tendo-nos sido dito não existir sol em Domain. De facto, o breve contacto com o humano parece ter sido fecundo para o tripplesapien Tlön, que acolhe a nossa cultura para transformar a sua realidade, impulsionando uma híbrida expressividade. Ou talvez então a história se dê em nossa própria paisagem psíquica, de onde emergem impulsos deformes como monstros e onde as dinâmicas dos tripplesapiens compõem os arquétipos da humanidade — nossas diversas facetas lidando com um real fugidio e esforçadas por extrair do nosso inconsciente coletivo certos monumentos culturais, como símbolos alquímicos e citações nietzschianas. E assim a caverna, presente no enredo, torna-se o túnel platónico à verdade das vidas passadas onde Tlön conserva os fragmentos de outrora e através do qual um dos humanos conseguiu acessar a nossa psique. Sob tal interpretação, as suas representações plásticas mais convencionais de facto adquirem grande coerência narrativa.
O que não nos exime de ponderar a relevância de uma premissa que se acomoda à narrativa literária mas limita a autonomia plástica, que inclusive acaba por remover o tom evocativo da história escrita — pois, ao invés do artista apropriar-se da poesia presente na história para atingir uma plasticidade mais aberta, opta por ilustrar algumas das cenas chave do livro. Talvez seja este o grande desafio de assumir tanto o papel do escritor quanto o do artista. Mais fácil ao intérprete manter autonomia crítica quando não foi ele próprio o autor da obra modelo, a ele uma realidade objetiva primeiro enfrentada, depois alterada. Ao criador jamais é permitido tal impacto imediato com a obra, dado ter ele próprio presidido todas as etapas de seu vir-a-ser num lento processo que acaba por calcificar o seu entendimento, dificultando subsequentes revisões. Sob a compreensível dificuldade em separar-se de si mesmo para exercitar outros olhares, rompe-se a referência e a releitura — ainda que um certo grau de contradição seja desejável em toda prática que vise escapar de uma confortável autoparódia. Houvesse mais incoerência entre ambas as suas práticas, talvez sua obra adquirisse uma contradição vital não ao todo distante da rivalidade sugerida, em seu próprio livro, como veículo à verdade. E não seria a mais fértil rivalidade a que o sujeito trava consigo?
O mito nada mais é, diz Joseph Campbell, que a manifestação simbólica das nossas energias em constante conflito.[3] Já William Blake escreve que todas as deidades residem em nosso peito,[4] ecoando o Chandogya Upanishad: a luz que emana no céu é a mesma que brilha no coração humano. Tal costura entre o particular e o universal, como crê o misticismo, entende o nosso íntimo não como via fechada, mas canal ao infinito. Como o vento apenas sonoro quando investido na flauta, a vastidão universal é manifesta pela nitidez dos particulares — a concretude permite, não impede o além. O mundo só se abre para nós, escreve Blake, quando desenvolvida a imaginação poética capaz de contemplar os contrastes da existência. Não à toa foi artista — talvez apenas a arte encontre o ponto ótimo entre o realizado e o misterioso, encontrando o universal mediante as singularidades de suas obras: o personagem teatral é mais real que o espectador, pois mais próximo do arquétipo presente na constituição de cada indivíduo. Na rede estirada tanto entre os planos superiores e inferiores quanto entre a eternidade e o momento atual, a grande obra haverá de situar-se — também o místico, ao misturar dentro e fora, transita entre os sefiróts, costurando todos os planos cósmicos: “assim como em cima, também embaixo”, escreveu o próprio Trimegisto. Encontrar encanto apenas em realidades alternativas é renegar este real a um estado de exílio espiritual. Se Blake escreve que a verdadeira percepção vê o infinito em cada coisa, Borges coloca-se como protagonista e situa na periferia de Buenos Aires o seu conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius sobre a estranha realidade de um planeta fictício, conservando a fantasia no mundano. De facto, o sujeito moderno rejeita a ideia de um íntimo imaculado por entender o progresso espiritual como um diálogo constante com o mundo externo, para mediante as circunstâncias aceder, imanente, à planos mais refinados.
Potencializar o vasto no singular sem limitá-lo aos contornos do mundano é talvez a mais difícil alquimia artística. Pedro Moreira manifesta tal entendimento não só na natureza modelar dos tripplesapiens nem apenas na interessante relação entre seus corpos espectrais e seu mundo de argila, mas sobretudo no enredo central de sua história: a descoberta da morte e o duro amadurecer que dela advém. No entanto, parece preferir, no geral, a abstração das alegorias, enraizando-se num real à parte do por nós vivenciado, território atemporal e divergido de banalidades. Também alguns surrealistas encontraram em tais paisagens desoladas o relevo perfeito para explorar o onírico e o inconsciente, e por isso talvez tenham cortado contacto com o fantástico presente no mundano — ou quem sabe tenham justo clareado o eterno que nos habita, demarcando melhor os distintos planos de nossa experiência, desde o corriqueiro até a calada quimera.
O fim de Orbis e Tertius é a violência. O de Tlön e Uqbar, a paixão. A incompreensão de ambas as relações distancia até os amantes, apenas unidos em suas ausências. Se a história inicia na rivalidade e depois flerta com a síntese, ao fim é o fragmento que cobra o seu tributo. E se as dinâmicas de Domain sugerem uma espiritualidade imanente, onde a energia cósmica emana argilosa mediante o labor dos tripplesapiens, as exigências inquestionáveis do Programa de Profecias evocam o temperamento de um deus do antigo testamento, transcendente e solitário. Tal contradição é resolvida de forma magistral pelo arco da Bíblia, aqui emulado — a mudança do tempo cíclico da ingénua eternidade para o tempo linear do inevitável apocalipse é a fruta que todos mordemos para, enfim, começarmos a viver, realizando o que antes era apenas possibilidade.
Perpetual Motion Machine, de Pedro Moreira, está patente na Galeria da Boavista até 30 de março, com curadoria e texto de David Revés.
[1] Burke, Edmund. (2016). Investigação Filosófica Sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e da Beleza. Edipro: Parte V, Seção I.
[2] Argan, Giulio Carlo. (2010). Fuseli, Shakespeare’s Painter In. A Arte Moderna na Europa. Companhia das Letras, p. 131
[3] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KULwoop94cQ
[4] Blake, William. (1991). Poems And Prophecies. Everyman’s Library, p. 47.