Linha d’Água de Miguel Palma no MAR – Museu da Água e Resíduos
A exposição Linha d’Água insere-se na programação cultural do MAR – Museu da Água e Resíduos, em Sintra, que tem tido como foco principal a sensibilização ambiental e o cruzamento entre arte, tecnologia e ecologia. Nesta mostra, a apresentação de um conjunto inédito de obras do artista Miguel Palma — cuja prática artística é marcada pela complexidade conceptual e interdisciplinaridade para questionar as tensões entre progresso tecnológico e sustentabilidade ambiental — reflecte o compromisso do museu em promover a consciencialização ambiental por meio da arte.
O convite ao artista partiu do SMAS Sintra, representado pelo Diretor Delegado Dr. Carlos Vieira. Foi com a Diretora do Museu da Água e Resíduos, Helena Cardoso, e Ricardo Pereira, responsável pela coordenação da exposição e cenografia, que visitei a exposição. É importante, antes de avançarmos pela Linha d’Água adentro, relembrar que a obra e investigação levada a cabo por Miguel Palma caracteriza-se por uma exploração de objectos e narrativas da modernidade, frequentemente associando elementos como automóveis, aviação e arquitectura para problematizar as narrativas de progresso e os impactos ambientais e sociais das mesmas. Palma tem vindo a trabalhar com uma ampla variedade de meios – desenho, escultura, instalação, vídeo e performance –, criando diálogos que denotam o fascínio do artista pela tecnologia, combinando uma abordagem crítica que o permite explorar a relação entre natureza e máquina, entre a memória do industrial e os desafios ecológicos do presente. Explora a intersecção entre universos aparentemente distintos, articulando-os através da transformação de objectos em artefactos simbólicos, configurando-os e libertando-os de uma estética funcional, mergulhando-os na arte e técnica.
Esta exposição não é excepção e essa identidade faz-se notar no corpo de trabalho que evidencia o domínio conceptual. Helena e Ricardo começam por falar, naturalmente, pelo impacto que tem assim que entramos na sala, da obra que ocupa o centro — Cascata. Água, vidro, metal, madeira, cordas, tubos… trata-se de uma instalação com aproximadamente três metros de comprimento por dois metros de altura que estabelece, de forma clara, uma conexão directa com a temática central do museu e do próprio edifício. A sua estrutura, que remete para o industrial, para vigas e roldanas, serve de suporte para uma série de objectos, rochas, microscópio, lentes que ampliam, reservatórios que encerram, dispostos lado a lado. A sensação é de que estamos perante qualquer coisa viva, em funcionamento, que respira e tem energia própria mas que, também, de alguma forma, sublinha a fragilidade do equilíbrio entre o homem e o ambiente, o homem e a máquina, a fragilidade do estado das coisas. Falámos, de forma mais concreta, sobre um objecto-fragmento que está dentro de um dos “aquários”, um componente automotivo a que se referem, já por indicação do artista, como cérebro — “(…) este é o seu nome na indústria automóvel. Faz a gestão hidráulica da pressão das válvulas e dos óleos para a mudança da velocidade dos carros de caixa automática. Daí se chamar cérebro, porque é daqui que vai o comando para a caixa de velocidade”[1] — esclarece o artista em entrevista ao Público. Aqui, em contexto expositivo, é, como tantos outros objectos de que Palma se apropria, desprovido da sua função utilitária para ganhar novo sentido. Alude ao trabalho e pensamento que está por detrás de uma exposição, mas, parece-me também possível, um ressignificado enquanto metáfora para a capacidade – ou incapacidade – humana de gerir os recursos naturais de forma sustentável, uma reflexão crítica sobre os sistemas tecnológicos que construímos e os seus impactos ecológicos.
Também Biblioteca #1, #2 (2024), díptico composto por encadernações da revista científica La Nature, de 1908 a 1938, vem reforçar o carácter académico e didáctico do museu[2], ao mesmo tempo que questiona a relação entre ciência, arte e sociedade. Ricardo Pereira partilha que o conteúdo das revistas terá sido utilizado noutra obra e que, aqui, as encadernações funcionam como um elo entre o conhecimento, o museu e o público; o passado e presente, simbolizando, talvez, o conhecimento que é adquirido, mas também a necessidade de questionar e reinterpretar o que é transmitido continuamente.
As pinturas e desenhos (Meteo-rite e as série Tripofobia e Passepartout literário, 2024) exploram padrões visuais que evocam formas geológicas e texturas naturais, remetendo para a ligação entre terra e água. Com carácter gráfico marcado, que se repete, o artista junta movimentos de fluidez, que nos remetem para o curso e movimento da água, com referências tipográficas. Ricardo esclarece-nos que as letras nas composições foram recolhidas pelo artista de uma caixa didáctica dos anos 60. Aqui apresentam uma hipótese de uma linguagem própria, talvez a possibilidade de uma nova gramática, de uma escrita da Natureza.
O trabalho apresentado por Miguel Palma na exposição dá, assim, continuidade à sua prática artística de transformar objectos preexistentes em peças carregadas de significado simbólico. Profundamente enraizada numa reflexão sobre a modernidade, revela um compromisso contínuo com a inovação formal e conceptual, mostrando obras que não são representações estáticas, mas sistemas dinâmicos que convidam à reflexão e à continuidade de diálogo sobre estes temas. A água, tema central da mostra, não surge apenas como elemento físico, mas também — proponho — como metáfora para fluxos de memória, comunicação e vida, que ecoam as crises ambientais contemporâneas.
O artista, com a sua capacidade em articular questões complexas através de uma estética visualmente impactante, vem, através da Linha d’Água, juntamente com o MAR, criar um diálogo entre o espaço expositivo e as obras, convocando uma consciência crítica sobre o uso eficiente de recursos, destaque dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável 2030.
A exposição estará patente até 31 de março de 2025.
A autora não escreve ao abrigo do AO90.
[1] https://www.publico.pt/2025/01/08/culturaipsilon/noticia/circuitos-aquaticos-miguel-palma-2117820
[2] Ricardo Pereira em conversa com a Umbigo sobre a exposição.