Um corpo no Mundo, de Juliana Matsumura
A minha história
é outra
e começa agora
Estou sempre
a começar
(Adília Lopes)
03.01.2025. Passaram-se 3 dias desde o início do ano, época marcada por expectativas imensuráveis, promessas de um recomeço que tarda em acontecer. 5 dias desde a morte de Adília Lopes. E 10 anos desde a primeira edição de Dobra, onde, pela primeira vez, li este poema. Lembrei-me destas palavras enquanto visitava a exposição Um corpo no Mundo, de Juliana Matsumura. Agora, recupero-as com a certeza de que poucas refletem tão evidentemente a natureza do corpo no mundo: o movimento ininterrupto de começos; a ausência de pontos finais que demarquem um fim absoluto.
Resultado do trabalho desenvolvido pela artista numa residência artística em São Paulo, na FAAP – e em residência na Aderno Associação Cultural, em Portugal –, Um corpo no Mundo apresenta uma reflexão histórica e autobiográfica sobre a imigração japonesa no Brasil. Entre as cores terrosas e os materiais orgânicos, elencam-se vestígios desse passado histórico nos seus rituais domésticos. Reúnem-se objetos, códigos e referências que lhe são familiares, e, nas suas entrelinhas, tece-se também uma resposta à pergunta “O que é um corpo no mundo?”.
As obras apresentadas correspondem, na sua maioria, a mapas autorreferenciais, com inscrições e fotografias transferidas através do desenho. Pela primeira vez incorporada no seu trabalho enquanto elemento visual, a escrita sobre os mapas carrega em si um gesto simbólico. Trata-se de uma inscrição da artista no território comum, isto é, uma marcação da sua existência no tempo e no espaço. À semelhança de On Kawara, nas séries I Got Up e I Am Still Alive, Juliana Matsumura procura localizar-se no mundo através da escrita. Porque estar no mundo é escrever e mapear, mesmo que os mapas não sejam senão um registo visual da experiência subjetiva. É reclamar um lugar para si – entre as rotas dos ventos, as correntes marítimas e os rios que não cessam.
Dispostos nas paredes da galeria, estes mapas organizam-se em torno de duas peças centrais. A primeira, Kokoro I, compreende um conjunto de cinco peças metálicas, colocadas sobre pequenas almofadas de algodão, e um bastão de madeira. Esta peça é uma reinterpretação de um Butsudan, um santuário budista colocado nas casas japonesas que presta uma homenagem a Buda e aos familiares já falecidos. Note-se que esta homenagem tem, na verdade, uma dupla dimensão. Por um lado, as peças metálicas foram criadas para produzirem um som semelhante ao dos sinos de um Butsudan. Por outro, as almofadas de algodão parecem uma referência às colheitas no Norte do Brasil, onde inúmeros japoneses trabalharam durante o século XX. Kokoro I vem, assim, recuperar a ancestralidade da artista e, ao mesmo tempo, relembrar-nos da dimensão ritualística inerente ao Homem. Porque um corpo no mundo é também um corpo que procura atribuir-lhe um sentido, apoiando-se em rituais e narrativas explicativas múltiplas.
Por sua vez, Como folhas secas reúne retalhos da memória da artista. Juliana Matsumura costura tempos e lugares distantes numa peça que, em última instância, é uma tapeçaria da sua vida. Aqui, estão contidos todos os elementos que surgem repetidamente ao longo da exposição. Vemos navios, pontes, estruturas helicoidais e espirais. Um conjunto de elementos que, de forma mais ou menos evidente, sugerem uma deslocação no espaço. Estar no mundo é estar-se disperso: num estado liminar entre partir e chegar, entre os que partiram e os que outrora chegaram. É ter uma história – que é outra – e começá-la de novo, num outro lugar. E as cidades são, por primazia, um espaço de recomeço. São terra de (des)enraizamento, onde se faz casa de um lugar que não o era.
Mas mais do que uma deslocação no espaço, o movimento sugerido pela exposição diz respeito ao corpo enquanto devir, em mutação constante. O corpo no mundo não é, pois, uma unidade absoluta – é estar em fluxo; ser como processo. O Project Room de Inês Teles, desenvolvido numa sala adjacente à exposição, parece condensar estes princípios. A par das três pinturas da série Toques sobre ondas de água, que refletem a fluidez e mutabilidade dos corpos, a escultura Solid Lines, contorcida e fechada sobre si própria, remete-nos para a circularidade da vida. Esta peça é uma confirmação de que, ainda que em movimento perpétuo, tendemos sempre a regressar à nossa origem. Assim o fez Juliana Matsumura. Assim o farei também. Afinal, cada recomeço leva-nos um pouco mais perto do lugar de onde partimos.
Com curadoria de João Silvério, a exposição Um corpo no Mundo está patente no Coletivo Amarelo até dia 22 de fevereiro.