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À conversa com Maria Marques Moderno, autora da Capa do Mês

Dos sonhos e da esperança nasce uma cama – Maria Marques Moderno mostra-a pela primeira vez na Capa do Mês da UmbigoLAB. Por entre sussurros, Maria desvenda o que está por baixo do lençol, percorrendo novamente o caminho que fez, com uma cama de gesso, pelas ruas frias de Liege. Moderno ilumina os simbolismos dos objetos quotidianos, as marcas de vida e morte que neles deixamos impressas. Instintiva e ritualista, desbrava tanto caminhos físicos como imateriais. Esta conversa é tida a três, num círculo de confidência que apenas o conforto da cama e da amizade oferece.

Maria Miguel Café: Sei que combinamos conversar hoje, mas estou a ficar com tanto sono… só me apetecia deitar com vocês e dormirmos as três juntas, tão juntinhas que acabávamos no mesmo sonho. Querem deitar-se aqui a meu lado? Às vezes as coisas vêem-se melhor de baixo para cima, na horizontal.

Maria Marques Moderno: Que lindo! Eu por acaso estou deitada, já estamos sincronizadas.

Laurinda Branquinho: Eu também estou comfy com uma mantinha por cima.

MMC: Só faltam os sonhos e a esperança. Com o que sonhas, Maria?

MMM: Sonhar acordada é o meu sonhar preferido. Faz parte de uma criança minha, viva ainda. A culpa de estar constantemente a sonhar acordada é sempre da vontade. Quando estou a dormir os sonhos são diferentes, sonho a cores e sempre com pessoas que estão na minha vida, que me dizem coisas. Tenho um caderno onde aponto quem surge mais e menos, e tento perceber o que as mensagens querem dizer.

LB: O sonhar acordada vem sempre da vontade, da esperança?

MMM: Sim. Quando quero, quero muito. Gosto de trazer os sonhos para o mundo real, que se manifestem do interior para o exterior. A vontade é a materialização da Esperança.

LB: Sonhaste com esta cama?

MMM: Não sonhei com ela, mas ela surge de uma vontade – é a concretização de muitos desejos e mesmo não estando pronta para sair, sai de muleta e anda assim meio coxa. Mas no fim não me dá o que preciso: não me consigo deitar nela.

MMC: Nunca estás sozinha nos teus sonhos de olhos fechados. E de olhos abertos? Nos registos desta peça estás sempre acompanhada, pela cidade e a luz, pelas amigas que te ajudam a arrastar a cama por todo o lado…

LB: E que se preocupam com a cama, como se também fosse delas.

MMM: Estou sempre acompanhada, em todo o lado. A cama é minha, mas às vezes as pessoas deitam-se ao meu lado, nas camas reais, as que estão nos quartos. Mesmo sozinha estou acompanhada. A cama é de todos. Fui eu que a fiz, tem a minha altura, mas não a minha largura. É uma cama de corpo e meio, dá para uma pessoa se aconchegar ao meu lado.

LB: Dá para duas pessoas, mas sem dar, não te consegues deitar nela… achas que a cama surgiu nesta altura por estares longe da tua cama, daquela que fica no teu quarto? Consigo ver uma relação entre o lugar onde estavas (longe de casa, noutro país) e o objeto que construíste, uma cama, sem colchão ou estrutura estável para te deitares. 

MMM: Sim, nunca estive fora de casa durante tanto tempo. Este projeto surgiu quando estava em Erasmus, em Liege (Bélgica), onde morei durante 6 meses e estava sempre muito frio, porque era inverno. Não era uma cidade muito confortável, era hostil. Não me lembro bem como é que a cama surgiu, mas tenho quase a certeza que veio dessa necessidade de conforto, de um sítio que te consiga aconchegar, que te abrace. Também estava sempre muito escuro e a cama veio iluminar um bocadinho isso.

MMC: As velas que acendes na cama dão então para duas coisas: aquecer e pedir desejos.

MMM: As velas acho que materializam o desejo. Aquecem e iluminam. Gosto quando as velas estão só acesas, de olhar para elas e não pensar em nada. Acho que estamos sempre a pensar em muita coisa e, às vezes, estar numa cama é não pensar em muita coisa. Gosto desse lugar, onde tudo está silencioso. Surgiu também de uns Anjos que, quando era mais nova, a minha mãe punha no meu berço e na minha cama (até ter uns 5 ou 6 anos). Quatro anjinhos, um em cada ponta da cama, como se protegessem o espaço onde dormia. Então quis concretizar isso: tornar a cama num espaço sagrado, protegido.

LB: Que lindo! Mesmo frágil, está protegida dentro de um círculo de fogo, quentinho. Mas porque a levas para a rua?

MMM: A cama é um lugar de conforto e de intimidade, mas também onde as pessoas adoecem e morrem. Como é um lugar tão vulnerável e íntimo, queria contrastar com o exterior. É íntimo, mas não tem de ser forte, pode ser frágil: a fragilidade e a intimidade andam de mãos dadas. A cama é um sítio que é para estar dentro do quarto, no interior, não é para estar no exterior. A minha ideia era que ela fosse uma espécie de luz lá fora.

MMC: Porque a levas por vários sítios? Estavas à procura do sítio certo ou o próprio movimento do caminhar e de a carregar no corpo cria em si algo de ritualista que vive por si?

MMM: Não sei, acho que isso surgiu com o movimento. Encontrei um carrinho de mão, meti a cama, e ela ficou com rodas, conseguia andar, e comecei a levá-la pela estrada, como se fosse um carro. Havia vários sítios onde queria que a cama estivesse. Queria muito que fosse ao pé do Rio Meuse, por onde passava todos os dias. Estava só a ir ter com o rio, parando nalguns sítios que faziam sentido, sempre de uma maneira intuitiva.

LB: Parece que querias que a cama fizesse o esforço que o teu corpo também fez durante a tua estadia em Liege, que ganhasse corpo, que fosse aos mesmos lugares que tu.

MMM: Sim, acho que de certa forma a cama acabou por fazer o caminho que eu fazia todos os dias da minha casa até à faculdade. Eu andava sempre a pé porque a cidade era pequenina, então passava pelo mesmo caminho várias vezes e estava sempre atenta. Foi intuitivo trazer a cama para os sítios que eu conhecia, para a cama fazer o que eu fazia. Ocupar território e confrontá-lo.

MMC: E como sabias que já tinha acabado a tua caminhada?

MMM: Quando cheguei à ponte em cima do rio. Não atravessei, fiquei a meio.

MMC: Foi lá que a deixaste?

MMM: Não, deixei-a num parque, no exterior: é aí que pertence. No dia seguinte nevou. Dois palmos de neve. A água voltou a ir ter com ela, noutro estado. O vento não apagou as velas, a neve sim. A cama é tão gulosa quanto eu, quer sempre mais.

MMC: Parece quase que a neve anunciou o fim, assentou-a no solo da rua onde pertence, apagou as velas, como se sentisse que já tinha todos os sonhos e a esperança que precisava – já estava protegida. As velas nas pontas parecem uma espécie de pista aérea, um sítio onde se aterra, avisam onde deve ir o corpo. Mas não há espaço para o corpo. Parece sempre haver uma dualidade, íntimo e exterior, rua e quarto, quente e frio, fogo e neve.

MMM: Acho que esses contrastes estão presentes no meu trabalho de várias formas. Foi a primeira vez que vi neve assim, na cidade, e penso que a cama teve um fim bonito.

LB: O que sentes em relação ao seu desaparecimento? Fizeste-a para materializar sonhos, mas ela acabou por desaparecer pela condição em que estavas. Nunca a conseguirias trazer para Portugal, sabias que a ias deixar quando a começaste a fazer. É uma ação que adivinha a tragédia…

MMM: Os desejos e a esperança podem desaparecer na sua forma material, mas nunca vão desaparecer mesmo. Sinto que às vezes tem de haver sacrifícios e tenho de deixar as coisas irem. Sabia logo desde o início que se a construísse não a ia conseguir transportar, mas às vezes não é sobre possuir as peças. Até hoje não sei se a cama continua lá ou não, se calhar já não, mas também não quero descobrir, quero aceitar que era esse o seu destino.

LB: E qual o teu destino, para este ano?

MMM: Não sei. As coisas vêm intuitivamente e acabo por saber onde tenho de ir no tempo certo.

MMC: E se pudesses pedir um desejo?

MMM: Estou neste momento em São Miguel, na ilha mais bonita do mundo, onde está muito nevoeiro. Não vejo nada a um palmo de distância. Hoje pela primeira vez desde que cheguei esteve muito sol e via-se tudo, o mar e o horizonte, as crateras e as lagoas… desejo ver as coisas no seu todo com elas são. Se tiver sorte.

MMC: É simbólico que estejamos a ter esta conversa contigo rodeada por água. Como a cama ficou.

MMM: A cama ficou insular. O insular da ilha de dentro.

LB: Isso é muito lindo… Isso, isto…

MMC: Fiquei embalada com a história da ilha e do nevoeiro e do sol… pintaste um quadro tão bonito que acho que é desta que adormeço. Vou fechar os olhos. Querem juntar-se? Mesmo longe umas das outras sei que nos vemos nos sonhos.

LB: Muito, quero muito.

MMC: Vou acender as velas, aqui está frio. Uma para mim, uma para a Laurinda, uma para ti, Maria. E a última?

MMM: Para o mar. Para a água. Para todos os outros. Os que estão na cama comigo.

Laurinda Branquinho (Portimão, 1996) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Estagiou na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa onde colaborou com o projeto TRAÇA na digitalização de filmes de família em formato de película. Recentemente terminou a Pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do coletivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo. Maria Miguel Café (Portimão, 1997), artista e professora, licenciou-se em Arte Multimédia pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Passou pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, onde se pós-graduou em Estudos Artísticos. Atualmente encontra-se a concluir uma pós-graduação em Webdesign UI/UX no IADE, onde tem vindo a desenvolver um projeto que une o seu interesse pela arte ao digital. Escreve poesia nos tempos livres e trabalha como artista e designer freelancer.

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