Top

A Natureza Aborrece o Monstro de Alexandre Estrela na Culturgest

“Eu vejo duas imagens; numa está a cabeça C-P rodeada de coelhos, na outra de patos. Não reparo que são a mesma. Segue-se daqui que de ambas as vezes vi coisas diferentes? (…) Mas o que é diferente: a minha impressão? O meu ponto de vista? – Posso dizer isso? Eu descrevo a transformação como descrevo uma percepção, exatamente como se o objecto se tivesse transformado diante dos meus olhos.”[1]

Ludwig Wittgenstein, ao escrever este excerto, refere-se à famosa cabeça pato-coelho, um desenho cuja ambiguidade proposital permite ao seu observador vê-lo enquanto cabeça de coelho ou cabeça de pato. Esta figura, em conjunto com outras de propósito semelhante, surge com o objetivo de abordar o conceito de “ver como”, na medida em que, explicitando o caráter subjetivo do ato de ver e atribuir significado, diferencia-o da interpretação. Contextualizada na sua elaboração de “significado como uso”, a figura do pato-coelho surge como imagem central para a exemplificação da formação de significado através do uso do sujeito que a vê: a imagem em si nada representa senão o uso que os que a veem lhe atribuem. Uma das peças de maior destaque da exposição A Natureza Aborrece o Monstro, de Alexandre Estrela, lida diretamente com esta imagem. Rabbid Tuck, uma grande projeção de vídeo, oscila entre a imagem de uma ave e de um coelho, produzindo pela persistência retiniana uma nova entidade que surge da interseção temporal das duas. Invertendo a figura original, em que o mesmo desenho pode figurar ambos os animais – através, aqui, de duas fotografias ausentes de ambiguidade –, manifesta-se uma nova figura que, aparentemente, não existe: um monstro. E lembramo-nos também de Wittgenstein quando, ao notarmos que a ave não é efetivamente um pato, o artista, por nos colocar em diálogo com a imagem original, nos permite que a “vejamos como” um pato.

Ainda que a peça de Alexandre Estrela não se apresente, nem pretenda fazê-lo, como uma transposição do exemplo de Wittgenstein[2], um propósito mantém-se como central: a relevância direcionada para a perceção e a plasticidade dos modos de ver de um sujeito perante uma imagem. Conseguimos encontrar na exposição, patente atualmente na Galeria 1 da Culturgest e composta por várias obras produzidas entre 2010 e 2024, diversos outros momentos em que o esquematismo da imagem se encontra acoplado a uma vontade de modelar a sua perceção. Ou, melhor dizendo, deixar a perceção modelar a própria imagem. A peça Barómetro, por exemplo, materializa de forma particularmente sarcástica esta capacidade, onde, ao sobrepor sobre um plano de uma erva um gráfico e escala arbitrários, pressupõe uma relação aparente entre o plano e uma mediação científica que não existe.

De igual modo, a peça Pockets of Silence, composta por uma instalação vídeo de dois canais juntamente com um poster científico e uma brochura, parte da comunicação do medo através do silêncio para construir dois mecanismos audiovisuais cujo movimento constante e agressivo se torna habitual e, por vezes, ocorre um momento de inconstância quando ambos, em sincronia, se interrompem. Seja a imagem lumínica de um helicóptero que é estendida pelo espaço ou a alternância entre diferentes perspetivas à volta de um centro definido na tela, as disrupções percetivas aliam-se a um outro importante componente: o momento de paragem é definido aleatoriamente, sincronizado com a já mencionada Rabbid Tuck. Se a aleatoriedade da geração deste momento pode parecer fútil ou impercetível, ele representa apenas uma das cavidades por onde a exposição parece abrir-se, seja internamente entre os seus elementos ou com o exterior. Isto é, contrariando uma lógica em que os objetos expostos são fechados e resultantes de uma intencionalidade humana e subjetiva do artista, as peças aqui apresentadas são constantemente interseccionadas por agenciamentos de diferentes origens, seja uma (tentativa de) aleatoriedade, ou, por exemplo, a colossal Redskyfalls, que apresenta continuamente a imagem do screensaver do macOS High Sierra reagindo à atividade sísmica global. Outro exemplo, na relação entre os diferentes elementos, é visível em Teia, onde parte da projeção é redirecionada para ficar enquadrada com Rabbid Tuck. O que se torna particularmente evidente é a forma como os elementos, mais do que objetos estáticos e encerrados, distribuem-se como dispositivos que agenciam movimentos, disrupções, alterações e dialogam constantemente entre si, com um determinado “fora” daquele espaço e, acima de tudo, com o sujeito que os encara.

Ora, é precisamente neste sentido que estes dispositivos permanentemente se desafiam no ato de desorganizar e reorganizar perceções. Reza Negarestani, a propósito do formalismo no trabalho do artista Florian Hecker, destaca: “refere-se às tecnologias da forma como sistemas capazes de criar ordens mais elevadas de liberdades cognitivas, utilizando as propensões construtivas da forma, tais como a manipulabilidade regida por regras, a capacidade de ordenar experiências, a exteriorização e a desencarnação da cognição e, em particular, a composicionalidade e a síntese devido à autonomia das formas no que diz respeito a conteúdos sensíveis ou semânticos específicos.”[3] Se, neste caso, o autor sublinha estas características relativamente a um trabalho sonoro e sobre a perceção deste, as suas observações não deixam de ser de extrema precisão para caracterizar o processo de Estrela relativamente à perceção visual. Aliás, é num sentido semelhante que o seu trabalho se aproxima das práticas do chamado cinema estrutural, não como modo de iluminar uma estrutura cinematográfica pré-definida, mas na medida em que, abstendo-se de propósitos imersivos, procura agenciar-lhe alterações, re-sínteses: “Desinteressado, desafetado e desligado de qualquer desejo real, o juízo estético, a experiência que ele condiciona e a conceção de arte que ele implica, representam, portanto, a forma mais pura de autonomia (…) É esta dissociação ou desinteresse que confere aos formalismos uma liberdade cognitiva, a capacidade de mobilizar as formas e as suas ligações regidas por regras contra novos contextos, diferentes problemas, fenómenos ou enquadramentos, de modo a identificar e mapear novas formas de intuição ou novos conteúdos semânticos inacessíveis à experiência ou ao pensamento comuns.”[4]

A conjunção das peças Entrada/Saída e Square and Circular Sounds ilustra particularmente bem este interesse. Além de a primeira viver do processo ilusório articulado entre um tubo e uma projeção num ecrã de metal, funciona literalmente como forma de incapacitar o espetador de se deslocar ao corredor entre elas. No interior desse corredor, num espaço que é simplesmente observado à distância, a obra Square and Circular Sounds vive da reprojeção de um vídeo no próprio material nele visível, mesclando real e virtual.

O trabalho de Estrela, além do vídeo, preocupa-se pelo seu cruzamento com o real, com o espaço, com os objetos. Retornando a Wittgenstein, se a figura do pato-coelho representa a formação de conteúdos semânticos pelo uso, todo o trabalho de Estrela aqui presente parece envolver-se numa modelação constante de novas formas de “ver como”. Acompanhemos então Fernando Zalamea quando lê na filosofia de Wittgenstein uma abordagem semelhante à Teoria dos Feixes na matemática: “que tipo de regra torna um absurdo local num sentido global? (…) Um feixe é uma regra para juntar o absurdo ao sentido”[5]. A ausência de sentido local, inevitável em qualquer proposição, coexiste precisamente com a criação de sentido na linguagem como um todo global. Só a partir dos monstros que vemos nas imagens poderemos alguma vez dar à Natureza (algum) sentido.

A Natureza Aborrece o Monstro, de Alexandre Estrela, está patente na Culturgest, em Lisboa, até 2 de fevereiro de 2025.

 

[1] Wittgenstein, L. (1995). Investigações Filosóficas. Em Tractatus Lógico-Filosófico – Investigações Filosóficas, pp. 540, 541-542.
[2] O artista James Coleman terá já apropriado a figura de forma mais literal na peça Duck – Rabbit de 1973.
[3] Negarestani, R. (2016). Technologies of Form as Technologies of Autonomy. Em Mackay, R. Florian Hecker: Formulations, p. 36. Tradução livre.
[4] Negarestani, R. (2016). Technologies of Form as Technologies of Autonomy. Em Mackay, R. Florian Hecker: Formulations, pp. 40, 41. Tradução livre.
[5] Anónimo, comunicado por Zalamea, F. Wittgenstein Sheaves, p. 3. Tradução livre.

Mariana Machado (2000) nasceu no Porto e estudou Cinema na Escola das Artes - Universidade Católica Portuguesa. Neste momento, frequenta o Mestrado em Artes Digitais e Sonoras, também na Escola das Artes. É artista e investigadora, interessando-se acima de tudo por manifestações que articulem a imagem em movimento num contexto entre o cinema e a arte contemporânea, assim como pelas potencialidades artísticas de novas tecnologias e suas articulações com outras materialidades.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)