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Esboço para um museu: 3, Melissa Rodrigues

Esboço para um museu é um ciclo de entrevistas que propõe amplificar a crescente referência a questões coloniais e pós-coloniais na cena artística em Portugal ao longo dos últimos anos. O objetivo principal passa por fomentar o diálogo entre uma série de práticas e iniciativas artísticas que têm vindo a reclamar um espaço adequado a essa discussão, assim sublinhando um vazio institucional a nível cultural e artístico. Nesta terceira entrevista, Guilherme Vilhena Martins conversa com Melissa Rodrigues (Cabo Verde, 1985), curadora, arte-educadora e performer.

Licenciada em Antropologia, é membro do grupo de investigação interdisciplinar InterStruct Collective e faz parte da equipa de programação da associação cultural RAMPA no Porto, integrando ainda o Serviço Educativo do Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Como investigadora nas áreas da Antropologia e da Performance, tem desenvolvido pesquisas em Cultura Visual, Imagem e Representação, tendo co-criado e apresentado em junho de 2017 a performance coletiva cabelo com o coletivo feminista negro Chá das Pretas e, durante o mesmo ano, criou a performance-conferência do submisso ao político – o lugar do corpo negro na cultura visual. Melissa é também uma ativista antirracista e membro fundador do Narp – Núcleo Anti-Racista do Porto (coletivo antirracista sediado no Porto).

GVM: Estudaste antropologia e és artista, curadora e educadora. Como é que se traçou esse percurso? Como é que passas das artes performativas para a antropologia e, depois, da antropologia para a programação?

MR: Há uma conexão bastante orgânica e flexível entre todas elas, que me interessa mais do que as disciplinas em si. Interessa-me a possibilidade de abertura. As artes performativas e, principalmente, a dança, surgiram por fascínio. A antropologia, porque queria ir para a faculdade e pelo contexto em que eu estava, as pessoas que conhecia naquele momento, em particular a mãe de uma amiga minha que era antropóloga, área que eu desconhecia até aí.

Foi muito contextual. Interessou-me conhecer e aprofundar o estudo de diferentes culturas. Interessava-me perceber melhor a cultura na qual vivia e as outras também. Quando era mais nova, tinha esse fascínio de poder conhecer outras culturas e pensar sobre o mundo. E acredito que aquilo que eu continuo a fazer é pensar a partir do mundo e sobre o mundo, ainda que este ângulo tenha acabado por ser uma desilusão.

GVM: Então?

MR: Não foi o que eu imaginei que pudesse ser. Mas isso também foi muito importante em termos de pensamento, de estar em contato com alguns autores e com outros modos de ver o mundo. A antropologia, apesar de ter sido uma desilusão e de me ter trazido muitos questionamentos e de várias vezes ter pensado em desistir, muita resistência, trouxe-me essa possibilidade de ver, a partir de outras perspetivas, essa possibilidade de entrar em contato com diferentes textos. Textos que, olhando para trás, foram formadores, também, e importantes para mim.

GVM: Achas que essa desilusão também foi importante, depois, para a passagem à curadoria, por exemplo?

MR: Totalmente. Acho que até mais do que a passagem para a programação ou para a curadoria, ou mesmo para a minha prática artística, que surge mais cedo, essa desilusão levou-me, como dizes, a querer estar no mundo de forma mais prática… Nisto tudo, eu já estava no meio ativista, já conhecia várias pessoas.

O ativismo sempre fez parte da minha vida e da minha prática. Comecei ainda na adolescência, através de uma aproximação a uma juventude partidária. E isso também foi muito importante, obviamente – ter feito parte desse movimento com outras pessoas jovens foi fundamental para a estruturação de um pensamento mais político e mais crítico. Essa passagem pela licenciatura em antropologia fez-me querer ter uma ação mais pragmática, mais dentro do território, no sentido de poder criar mudança. Uma mudança menos abstrata.. E isso, sim, leva-me à minha prática artística, que é um lugar de um pensamento político, de uma arte política.

E a arte política relacionada com o ativismo, com esse fascínio que eu falei pelas áreas formativas, principalmente pela dança, também já a tinha pelo teatro. No fundo, tudo começa na escola, no teatro amador, na periferia de Lisboa, entre Queluz e Massamá, Queluz/Monte Abraão e Massamá, que eram os lugares onde eu circulava. Foi aí, na minha escola secundária, que tive contato com o teatro amador e com as artes performativas. O início da dança foi nessa altura e também foi nessa altura que tive o primeiro contato com a antropologia.

GVM: Como é que tu vês agora esse percurso e a importância do acaso que te levou sítios onde talvez fosse mais difícil chegar? Estou a pensar num artigo teu que li há pouco tempo onde dizias que em Mem Martins, uma das freguesias mais populosas de Portugal, não há nenhum teatro. Em casos como este, acabas por ficar um bocadinho entregue ao acaso ou a ti próprio, cria-se uma certa vedação à volta desses espaços, especialmente no meio cultural. Como é que tu vês hoje essa dependência do acaso?

MR: Não sei se acredito em acasos. Acho que há várias respostas. Mas posso responder-te a partir de um lugar social, digamos assim, onde esses acasos não existem. Não vivemos de forma isolada na sociedade e interessa-me muito pensar em coletivo e pensar que eu poder estar onde estou agora e trilhar este percurso que trilhei tem a ver com muitas outras pessoas que fizeram outros caminhos antes de mim, que me acompanharam e que, de forma mais próxima ou menos direta, são importantes neste percurso: professoras, professores, pessoas que dentro do sistema educativo foram muito importantes. Posso falar do meu pai, da minha mãe, de familiares, de pessoas completamente aleatórias que também foram muito importantes, como a mãe da minha amiga antropóloga, que não havia no meu contexto.

Neste lugar específico, na juventude partidária na Amadora, conheci esta pessoa cuja mãe era antropóloga e com quem, ainda adolescente, com 17 anos, tive vários momentos interessantes de troca e de partilha. Com isto quero dizer que todas as pessoas que nós encontramos e a forma como elas nos tocam e os momentos que partilhamos com elas podem ser realmente estruturantes da nossa vida. Tudo isto é importante e informa muito o meu percurso e a minha prática. Além de toda a questão espiritual, também toda a questão da luta, da luta do movimento negro, ou seja, muitas outras pessoas antes de mim trilharam diferentes caminhos para que eu agora pudesse fazer este caminho.

GVM: Absolutamente. De facto, a questão da rede é fundamental. Era até mais nesse sentido que eu perguntava acerca do acaso, porque a necessidade de criar essas estruturas, parece-me, é também uma forma de resposta ao facto de muitos lugares periferizados estarem entregues ao acaso, no sentido em que não há infraestrutura. E o acaso, o lado social é importantíssimo, mas o acaso dá sempre para os dois lados e muitas vezes acabas por não conseguir chegar a esses espaços porque estás entregue à tua sorte. Pegando nisso, qual é, na tua opinião, a importância de criar uma infraestrutura num espaço altamente precário do ponto de vista do acesso? Qual é o papel da educação? Eu li um texto teu há algum tempo a propósito do trabalho do Henrique Paris, em que tu falavas não só da prática dele, de coletivos como o Unidigrazz ou a Fonte, mas também de um trabalho em prol de uma rede, de tentar criar espaço e também de fazer um trabalho educativo, que é artístico, mas como meio.

MR: Ok, ok. Para mim, a única resposta possível é que quando não há, nós criamos. O que não existe tem que ser feito. Cresci bastante assim, em diferentes contextos, não só na periferia, mas noutros lugares – quando vivi no Porto durante oito anos, por exemplo. Não existe, então vamos criar. Temos de criar as nossas redes, as nossas estruturas. Temos de criar bolhas de oxigénio, espaços de sobrevivência a nível cultural, social, político. E dentro do contexto da periferia onde eu cresci, não criei mas juntei-me ao que existia, que também é muito importante.

Muitas vezes achamos que estamos a criar alguma coisa nova e já existe. Achamos que estamos a fazer algo muito diferente e alguém ao lado está a fazer uma coisa semelhante. Isso pode não ser assim tão positivo, porque dividimos as forças quando podíamos estar a reuni-las. Não faz sentido criar muitas microbolhas quando o que tem mais força é coletivizar essas bolhas para fazer alguma coisa maior. No contexto da periferia onde cresci, existia um espaço: a juventude partidária, um espaço com jovens, com outras pessoas da minha idade ou pouco mais velhas, inconformadas, que tinham também um pensamento crítico, uma vontade enorme de mudar o mundo, que era aquilo que eu queria, de fazer a revolução. E é muito importante na adolescência, seja na periferia, fora da periferia, poder entrar em contato com outras pessoas que pensam da mesma forma.

GVM: Achas que é um momento determinante?

MR: Sim. Estás a criar a tua identidade a vários níveis, a formar a tua identidade e precisas de encontrar um lugar de pertença. E para uma menina, uma jovem cabo-verdiana que crescia em Portugal, encontrar lugares de pertença era muito difícil. É difícil encontrar lugares de conforto numa sociedade racista. Não é que eles não existissem. Mas eu queria outros. Queria aqueles com os os quais eu pudesse identificar-me, fora do seio familiar, do meio seguro, da cultura segura, que é a família, os amigos.

A juventude partidária foi muito importante para encontrar pessoas que pensavam da mesma forma, criar espaços de pertença, não uma pertença racial, mas de pensamento. Mais tarde, vivi em Queluz e em Rio de Mouro. Em todos esses lugares, conheci pessoas, entrei em contato com coletivos da área, juntei-me ao que estava a ser feito e criei outras coisas com pessoas também que queriam criar, também queriam pensar. Fora da escola, estava ligada à juventude partidária, o que me dava uma noção do que era, por exemplo, organizar assembleias, manifestações, levar os meus colegas de escola de comboio até ao Marquês de Pombal para nos manifestarmos, até à assembleia.

Pensando na Linha de Sintra há quase 10 anos, penso que todos os espaços e todas as redes nas quais estive envolvida já existiam. Aquilo que eu fazia era criar uma maior articulação e juntar os meus diferentes interesses artísticos ou políticos. Não criei nada de novo; o que eu fiz foi juntar pontos e linhas, por assim dizer, e acredito que a minha prática tem a ver com isso. Não estou a criar nada de novo, estou apenas a juntar pontos e linhas. O mesmo na minha prática curatorial, na programação. Não estou a criar nada de novo: é olhar à minha volta através de um olhar mais profundo, um olhar que pensa como é que eu posso juntar, como é que eu posso realmente conectar. Interessa-me muito conectar pessoas, espaços, ideias. E em termos educativos, porque isto tudo para mim tem a ver com a educação, isto tudo para mim tem a ver com uma curadoria educativa, por assim dizer.

Isto tudo para mim vem de um lugar, desse lugar ingénuo onde acreditamos que podemos mudar o mundo. Vem desse lugar de acreditar que podemos realmente fazer as coisas de forma diferente e que a nossa ação pode trazer consequências. E é algo que eu acredito desde a adolescência: que a minha ação, não individual, mas em rede, pode fazer uma grande diferença. Esse pensamento político e coletivo vem do que aprendi em casa, do que o meu pai me transmitiu. De estar em relação com um para poder tentar mudar as coisas. Pronto, não sei se desviei muito. Mas isto para mim tem tudo a ver com a educação realmente e com o pensamento sobre e a partir da educação.

GVM: E como chegaste à educação?

MR: Eu comecei a trabalhar em educação exatamente porque houve um determinado momento na minha vida após essa juventude partidária em que também saí um pouco desiludida com a antropologia. Saí um pouco desiludida e pensei: como é que eu realmente posso tentar mudar as coisas? Como é que eu realmente posso fazer a diferença, mesmo que seja mínima? Para mim foi através da educação. Tens de estar no meio educativo, com crianças, com pessoas, em espaços de pensamento. Tem a ver com criar a mudança e para mim a base enquanto lugar de germinação é mesmo a educação. Formal ou não formal.

Esse veículo de comunicação também é fundamental na ligação entre o público e a instituição, porque penso que de outra forma haveria ainda mais barreiras naquilo que está a ser feito dentro do espaço institucional. Como é que o público vai aceder a esse espaço e como é que o público vai entender? É fundamental haver projetos educativos, projetos de mediação em espaços culturais, mas também noutros, poder comunicar a ciência, por exemplo. Se aquilo que está a ser feito não for comunicado, como é que o público vai entender? Como é que nós também podemos ter confiança nessas instituições, sentir que aquele lugar é nosso, que podemos entrar ali e que vamos ser acolhidas e escutadas e que a nossa subjetividade vai ser entendida?

Penso que esse é o papel dos serviços educativos e dos projetos educativos: acolher diferentes públicos e comunicar o que está a acontecer, seja arte, seja o que for, poder comunicar a esse público que espaço é aquele, o que é que está a acontecer, que obras são aquelas, que investigação é aquela e como é que isso se relaciona com a vida prática das pessoas, como é que entrar num museu de arte contemporânea pode ser transformador, como entrar em contato com um certo artista ou com uma certa obra pode realmente trazer mudança, trazer outros questionamentos para aquela pessoa.

Acredito que os projetos educativos são essenciais e que tem de haver investimento. Quando não há investimento, os problemas são muitos. A ideia de ver projetos educativos e de mediação é bonita, mas na prática há muita coisa a ser feita. Para começar é importante que não sejam serviços precarizados. É importante que haja respeito por aquilo que está a acontecer. Eu vejo no meu contato com o Brasil. Há um grande respeito pelo serviço educativo, por exemplo, na Bienal de São Paulo, na Bienal do Mercosul. Há a noção de que é tão importante como o projeto que é desenvolvido pela curadoria. São dois elementos a par. Isso é muito importante, porque elas têm de comunicar.

No fundo, o educador, a educadora, a arte-educadora faz também curadoria, não é? Também está a fazer um projeto de curadoria e está a fazer curadoria para um público específico, enquanto a curadora está a fazer curadoria também num momento específico, com um pensamento específico, com um conceito específico. Isto tudo tem a ver com pensamento, com investigação, com um trabalho prévio que é feito para depois poder comunicar aos públicos. Na base, o que falta no contexto português é isso: respeitar trabalhos desenvolvidos pelos projetos educativos, que são extremamente precarizados e que são muito colocados num lugar do entretenimento.

GVM: Achas que em Portugal o serviço educativo é relegado para segundo plano?

MR: Há estruturas, museus extremamente importantes em Portugal que têm esse pensamento. Isso é falta de respeito ou falta de cuidado, não é? É preciso perceber que os projetos educativos têm um papel muito importante na comunicação, na transmissão do pensamento daquele espaço ou daquela obra ou da exposição com o público. Isso tudo é educação, seja formal ou não formal, são modos de educar e modos de nos fazer pensar.

Outra questão importante tem a ver também com quem é que nós estamos a contratar, não é? Podemos até ter um serviço educativo muito importante e projetos muito desafiantes e estar à frente no que diz respeito a questões de trabalhar de um conceito que possa dizer-se desafiante, de ruptura, diverso, mas na prática as pessoas que estão a fazer aquela curadoria, que estão a trabalhar num serviço educativo, são todas brancas, por exemplo, ou cis. Então onde é que está realmente a transformação, a mudança?

Tem de haver esse cuidado, tem de se perceber que não é só falar de determinado assunto, temos que pensar quem é que pode falar de determinado assunto. E em Portugal há uma grande falha sobre isso. Temos curadoria em termos de programação e depois em termos também de quem age no terreno, não é? De quem está diretamente com o público, ou seja, da mediação e dos projetos educativos. Podes ter até vários artistas dissidentes, sexuais, de género, pessoas racializadas, imigrantes, mas se a curadoria ou o projeto educativo são feitos por determinadas pessoas, o discurso e a comunicação ficam hipotecados. Essa é a minha experiência.

Então até posso ter artistas negros, mas se a equipa de mediação e de serviço educativo é branca, se a equipa de curadoria e toda a equipa do museu, a equipa de determinado lugar da galeria é branca, vamos ter questões, vamos ter problemas. Porque muitas vezes não existe um pensamento aprofundado sobre aquelas temáticas que estão a ser trabalhadas. Por mais pesquisa que se faça, falta subjetividade, falta compreensão.

E essa compreensão muitas vezes não existe. Isto aqui já são outras questões também, mas para mim relacionam-se e são bastante representativas do meio artístico. Pode ser um pensamento mais acolhedor, diverso… E depois estas palavras todas, não é? Da diversidade, da integração, enfim. Palavras péssimas para serem usadas. Mas há todo esse discurso que chegou a Portugal com muito atraso. Temos de acompanhar esta tendência e temos de abalar um bocadinho a estrutura, porque a estrutura não foi abalada de tudo. Sim, agora há mais instituições a falar de determinados assuntos que não falavam, mais pessoas a trabalhar com determinados públicos e contextos demográficos, sociais, territoriais, por assim dizer, mas a mudança não está a acontecer.

GVM: Como é que podemos pensar os departamentos educativos, ou o elemento da educação, ao mesmo nível não só da curadoria, mas também da produção artística? Como é que tu vês o futuro dessa relação em contexto institucional, que é como apontaste muitas vezes um espaço hegemónico e de exclusão de narrativas não vigentes?

MR: Se o problema é estrutural, então temos que queimar a estrutura, é preciso reconfigurá-la, não é? Esse é o grande problema. Como é que vamos reconfigurar a estrutura se o privilégio de muitos não está sequer em questão, não está a ser questionado? Podemos questionar a desigualdade, a falta de oportunidades, o racismo, mas esse questionamento nas estruturas e nas instituições é sempre feito como se fossem os outros, não é? A sociedade é racista porque existem estes, a sociedade é desigual porque existe aquilo, a sociedade é machista porque existe aquilo… Não. As instituições e as estruturas fazem parte, constituem, beneficiam dessa desigualdade, desta estrutura. É extremamente difícil. A única forma seria realmente desestruturar a estrutura, daí a metáfora de queimar.

É muito, muito difícil. Mas também há outra coisa muito importante e que eu vejo a acontecer, por exemplo no exemplo que estavas a dar dos Unidigrazz e de outros coletivos que estão a ter espaço na periferia de Lisboa e que querem estar nesses espaços e não no centro da cidade, que querem ocupar os espaços periféricos. Lugares fora do centro. Há aqui um virar do jogo, não é? Há aqui um virar do jogo, que para mim tem muito a ver com a transformação do pensamento a nível geracional. Enquanto a minha geração e as gerações anteriores à minha tiveram uma necessidade de ocupar o centro, de ter estruturas no centro da cidade, que ainda não temos.

Não há estruturas negras, por assim dizer, artísticas negras, galerias e tudo mais, no centro da cidade. Começa a haver alguma coisa, mas ainda não é representativa e está mais ligada a outras diásporas do que à diáspora africana dos países colonizados por Portugal. Era muito importante que pudesse vir das diferentes diásporas africanas, infelizmente daquela da qual eu venho ainda não temos essa representação de espaços artísticos no centro da cidade.

Mas é muito importante haver esta descentralização e este regresso à periferia, ficar e não ter uma necessidade de validação. Isto para mim é a grande diferença: não ter a necessidade de estar no centro para ser validado. E também algo muito importante na viragem do jogo, esta atitude de ‘se vocês querem ver a arte que nós estamos a produzir, têm de vir ao nosso território’. Há aqui uma transformação. Isto para mim é muito importante, das coisas mais importantes que estão a acontecer no contexto artístico, principalmente nas artes visuais, em Lisboa.

E também ter jovens artistas, numa geração mais nova que a minha, que não está interessada nas instituições, em fazer parte das instituições ou em estar nesta ou naquela galeria, trabalhar com este ou aquele curador, em trabalhar a partir de uma perspectiva do olhar branco. Não têm de alimentar o ego e o olhar branco. Não têm de alimentar o desejo branco, o fetiche branco das instituições ou dos indivíduos. E assim podem concentrar-se, focar-se naquilo que realmente querem falar. Os Unidigrazz e muitos outros coletivos e artistas jovens estão a fazê-lo. Há uma viragem, um recentramento, acho eu, para um black gaze, um olhar negro que lhes permite falar a partir das suas subjetividades, das suas vivências, da sua realidade.

Para mim essa é a grande mudança. Voltando às instituições, acho que a minha geração ainda quer ter um lugar à mesa das instituições, digamos assim. Mas eu acho que cada vez mais queremos criar as nossas mesas, os nossos espaços. Então acho que aquilo que vai acontecer às instituições e às estruturas que não conseguirem se repensar, se questionar e se renovar, é que elas vão acabar por ficar para trás. Acho que é isso.

GVM: Sim, parece-me que isso aponta também para uma maior hibridez de funções.

MR: Em relação à questão da educação, não sei, andei assim um bocadinho, educação com a curadoria e tudo mais, eu vejo muito um papel que ainda não existe em Portugal, mas que existe no Brasil e que existe noutros contextos, do artista que é curador e do educador e da educadora que é curadora que é curador. Tem a ver com esta maior hibridez entre diferentes áreas e em não pensar a curadoria como o supra-sumo do contemporâneo e por os curadores num pedestal, mas pensar a curadoria como uma forma de educação, como um olhar afetivo sobre algo, uma exposição, um artista, um trabalho, um contexto.

Enquanto curadora, eu vou sempre querer fazer um trabalho de acompanhamento da pessoa com quem estou a trabalhar, com quem estou a trabalhar naquele contexto, que não é só organizar uma exposição e apresentar uma exposição. Há todo um trabalho prévio de conversas, de partilhas, de referências, de tudo que pode acontecer, não é? E isso para mim também tem a ver com a minha prática como arte educadora. Pensar a educação é pensar a curadoria, é pensar como é que chegas a um determinado público, como é que abordas determinada questão ou conceito… como é que transformas algo abstrato em algo que seja inteligível para diferentes públicos e que ao mesmo tempo seja sensível e sensorial. E acredito que isso atravessa a curadoria, a educação e o pensamento, não é? Como é que tu fazes essa tradução para algo que seja sensível, sensorial e que ao mesmo tempo questiona e desafia.

GVM: Tenho só mais uma pergunta rápida, relacionada com o facto da ideia de centro estar a perder protagonismo, a ideia de reclamar o próprio lugar, de tentar reforçar um lugar periferizado como igualmente válido, não como um não-centro, mas como um centro por si próprio. Há sempre esta questão ‘é importante criar redes, é importante estabelecer plataformas’. Mas como? De onde é que vêm os fundos? Eu acho que um dos pontos interessantes de projetos como os Unidigrazz é a reclamação de recursos junto de instituições que, infelizmente, não tendem a ser pensadas como parte esteio da cultura, mas que têm um papel fundamental a nível de financiamento. No caso deles, há esse shift de reclamar os recursos materiais não junto das instituições culturais, mas órgãos como a junta de freguesia ou da câmara municipal. Reclamar esses recursos que, no fundo, pertencem às populações e aos sítios. Se a ideia é ir ao âmbito do sítio, achas que faz sentido começar por aí?

MR: Sim, totalmente. Estamos aqui agora a falar de racismo demográfico. Por isso é que eu admiro tanto esta geração mais nova. Conseguem ter uma maior criatividade e também têm, na minha perspetiva, menos tempo a perder, menos medo. São mais diretos ao assunto. Isso é importante. Acho que a minha geração ainda está na negociação… ainda à procura de ocupar o lugar da instituição, o centro da cidade…

Mas sem dúvida que ter esse pensamento mais estratégico dessa jovem geração e de artistas afroportugueses e afrodescendentes a viver em Portugal, e portugueses negros a viver em Portugal, é que vai trazer outro tipo de mudança. Não posso dizer que é ‘a’ mudança porque ela não acontece de um dia para o outro. Há todo um trabalho que foi feito há muito tempo atrás para que estas gerações pudessem estar agora também a poder reivindicar desta forma e a poder negociar desta forma, não é? Mas eu acredito muito, acredito muito nessa geração.

Eu sou otimista e portanto acho que é uma boa forma de negociar e uma boa forma de não depender do financiamento das instituições culturais, porque depois há outras questões: quem é que vão financiar? Que tipo de trabalho é que vão financiar? Isto é uma pescadinha de rabo na boca. Não saímos do mesmo. E depois toda a gente a falar da desigualdade e que não tem acesso. Vamos falar realmente da desigualdade da desigualdade, vamos falar mesmo da periferia da periferia, vamos falar daqueles que não conseguem sequer que a sua candidatura seja observada de forma objetiva, que sequer seja, que seja, não é analisada de forma objetiva. Então aí temos… São várias questões.

Guilherme Vilhena Martins (1996, Lisboa; vive em Berlim) é escritor e curador. É licenciado em Filosofia pela Universidade NOVA de Lisboa e atualmente está a terminar um mestrado em Filosofia na Freie Universität Berlin. O seu trabalho literário consiste em dois livros - 'Háptica' (douda correria, 2020), 'Voz/ Estudo de Som' (edição de autor, 2022) - e textos, crónicas e críticas escritas para diversos projetos editoriais em português e inglês, entre os quais a Umbigo ou a Frieze. Geriu e editou também 'Alcazar', um projeto literário interdisciplinar que reuniu escritores e artistas visuais em torno da ideia de uma escrita transdisciplinar coletiva. Além disso, curou várias exposições em Portugal e na Alemanha e é um dos co-fundadores do projeto EGEU, iniciado em 2019 em Lisboa. Tanto a nível literário como curatorial, Vilhena Martins procura utilizar a prática artística como ferramenta crítica e forma de discussão. Tematicamente, o seu trabalho foca-se nas noções de resíduo, preenchimento e desejo, bem como nas suas diferentes instâncias, nomeadamente o fenómeno do turismo.

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