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Diana Policarpo e Jumana Manna em simbiose no Rialto6: extrair, explorar, conservar, extinguir

O número 6 da Rua Conde Redondo voltou a abrir-se à cidade – a cada sexta-feira. E a nova temporada da Rialto6 trouxe exposições de Diana Policarpo e Jumana Manna.

Comecemos por Mutual Benefits de Policarpo, de fora para dentro, porque a exposição estende-se pela montra até à rua (opção que se tornou deliciosamente um dado adquirido no espaço Rialto6). A vidraça do rés-do-chão ilumina-se em tons azul néon e é visível a estrutura que lembra uma mercearia cruzada com o lusco-fusco laboratorial. Este é o cenário que antecipa uma descida ao piso -1, mas que emoldura também o vídeo Summer Grass Winter Worm (2024). Num minuto (árduo e valioso), o registo de uma colheita do precioso fungo que alimenta a indústria farmacêutica e medicina tradicional asiática. Já no interior, nos pisos 0 e -1, Diana Policarpo desenvolve a narrativa. A artista posiciona o Ophiocordyceps sinensis[1] no centro de uma longa pesquisa que orbita entre a arte e a ciência, aliás campo comum no trabalho da artista; aqui representado com uma dicotomia entre ficção científica e documentário. É o Cordyceps, o protagonista que tudo conecta – o cobiçado fungo parasítico que torna o hospedeiro num zombie que a indústria do videojogo e o pós-pandemia transformaram em fenómeno pós-apocalíptico televisivo.

E se de fora assistimos ao prefácio desta narrativa, entramos agora no prólogo ilustrado de uma enciclopédia de imagens. Um conjunto de desenhos científicos a lápis de cor (Underground Allies de II a IX, 2024) entrecruzam close ups de raízes miceliformes, ramificações de neurónios e outras partes das entranhas oculares e dos caminhos cerebrais. Descemos “down the rabbit hole” em busca da origem dessas interconexões, interdependências e simbioses. Intensifica-se o ambiente alucinatório com estantarias metálicas preenchidas com sacos de amostras de terra e tubagens de ventilação no teto. Neste laboratório, Policarpo testa o impacto ecológico, e devemos dizer, biológico, da ação humana no ambiente, tendo como cenário o planalto tibetano, mas também numa futurista estação espacial em órbita. A narrativa não é imediata, é preciso desdobrar o texto de sala em momentos para compreender o quão mutualista ou parasita é a simbiose do fungo com os corpos. O quanto o Cordyceps se funde (realmente) com o hospedeiro, transformando-o, alterando-lhe a genética. São três os vídeos que mostram essa correlação entre o fungo, os corpos, a propaganda e a produção milagrosa de um “super poder” de alta performance e desempenho. A luz (azul elétrico), que por momentos nos lembra a estética inebriante dos filmes de Wong Kar-Wai, tem um papel crucial na unificação de todo o texto.

Policarpo encerra Mutual Benefits com Fungal Highways (2024). Nesta última sala, a tonalidade da luz muda e a toada carmim é dada por um vídeo-animação (um terceiro género cinematográfico) que nos convida a sentar (deitar) e envolver por almofadas neurais. Os tentáculos, que lembram Yayoi Kusama, abraçam-nos e viajamos ao interior do sistema nervoso, como denuncia a figura de visita à entrada da sala: um corpo celeste e um cérebro[2]. O Cordyceps está agora dentro do hospedeiro, confundem-se o vocabulário e a semântica, o encéfalo é também micélio e esse é o cruzamento (disciplinar) que interessa a Diana Policarpo.

Subimos até ao piso 1, a Broken, Taken, Erased, Tallied de Jumana Manna. A artista encena uma exposição que convida a uma visita repartida em pelo menos três momentos, um por cada um dos três filmes em exibição: A Magical Substance Flows Into Me (2016), Wild Relatives (2018) e o mais recente Foragers (2022)[3]. Já em junho do ano passado, Manna transformou o Sismógrafo no Porto num clube de cinema e para a leitura. Filmes e Estudos exibiu os filmes da artista, estes que referimos e outros, além de ter promovido um debate em torno de sete livros. Livros e filmes escolhidos pela própria artista, centrando a urgência da discussão sobre o estado[4] da Palestina.

Manna instala nos dois meios níveis da Rialto6 prateleiras de metal que armazenam de um lado esculturas em cerâmica e do outro pão e jornais. Lê-se no texto que acompanha a exposição que as “formas são inspiradas nos fragmentos de khabyas, estruturas para armazenamento de cereais que eram construídas em casas rurais do Levante, e que se tornaram obsoletas com a adoção de práticas de refrigeração”. Cache (2019) e Water Arm I and II (2018) estabelecem, portanto, um paralelismo entre as práticas de preservação ancestrais e as contemporâneas. Duas instalações/esculturas em diálogo direto com Wild Relatives (2018) ou Foragers (2022). Dois filmes que, entre o documental, o arquivo e o ficcional, questionam, à luz de um diferente olhar e procurando contornar a “ideologia dominante”, o que é digno de ser protegido, porque e como? A artista inquieta certamente os puristas da conservação e restauro, sublinhando o valor do património (imaterial – este apenas plenamente estabelecido no início do século), nos modos e meios de subsistência, nos ciclos da cultura agrícola ou nos cantares e oralidade. Património em vias de extinção, por pressão da opressão e colonização, e por via de uma conservação estagnada. A Instalação Old Bread International II (2023) sublinha-o, mostrando o apodrecimento do pão. Blocos pré-fabricados de cimento suportam uma estrutura “grelhada” de metal, tal como as prateleiras e o lambril da sala anterior. Sobre a mesa, folhas de jornal e pão em decomposição. Deixa-se morrer o “cereal”, um gesto que é paradoxal face ao esforço hercúleo de preservação da semente.

Mutual Benefits de Diana Policarpo e Broken, Taken, Erased, Tallied de Jumana Manna estão ambas patentes no espaço Rialto6 até dia 24 de janeiro. Estas são as últimas três sexta-feiras para assistir Wild Relatives dia 10; A Magical Substance Flows into Me dia 17 e Foragers dia 24, sempre entre as 15h00 à 19h30.

 

[1] O Ophiocordyceps sinensis é um fungo que torna o seu hospedeiro, as lagartas da traça-fantasma, em carcaças-zombies. Ataca o sistema nervoso dos insectos, alterando o seu comportamento e levando-o por fim à morte, tornando-se depois vegetação.
[2] E talvez Policarpo queira com a simplicidade conceptual deste vídeo resgatar do underground a cultura “beatnik” em resposta à massificação capitalista das colheitas.
[3] Este último foi premiado em 2023, em Lisboa, no festival Olhares do Mediterrâneo como melhor documentário.
[4] Nota: “Estado” e “estado” é um governo independente de um povo constituído como nação;
É uma terra, um território ou conjunto de circunstâncias em que “está” uma determinada geografia.
É também a sua situação atual.

Arquiteto (FA-UL, 2014) e curador independente (pós-graduado na FCSH-UNL, 2021). Em 2018 funda o coletivo de curadoria Sul e Sueste, plataforma charneira entre arte e arquitetura; território e paisagem. Enquanto curador tem colaborado regularmente com algumas instituições, municípios e espaços independentes, de que se destaca "Espaço, Tempo, Matéria" (exposição coletiva no Convento Madre Deus da Verderena, Barreiro, 2020), "How to find the centre of a circle" com a artista Emma Hornsby (INSTITUTO, 2019) e "Fleeting Carpets and Other Symbiotic Objects" com o artista Tiago Rocha Costa (A.M.A.C., 2020). Foi recentemente co-curador, com a arquiteta Ana Paisano, da exposição "Cartografia do horizonte: do Território aos Lugares" para o Museu da Cidade, em Almada (2023). Escreve regularmente críticas e ensaios para revistas, edições, livros e exposições. É co-autor do livro "Gaio-Rosário: leitura do lugar" (CM Moita, 2020), "À soleira do infinito. Cacela velha: arquitectura, paisagem, significado" (edição de autor com o apoio da Direção Regional da Cultural do Algarve, 2023) e de "Geografias Urbanas" (em publicação). A atividade profissional orbita em torno das várias ramificações da arquitetura.

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