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Goin’ Home de Noé Sendas na Brotéria

Um pequeno batente preto em forma de mão, como aqueles que serviam para bater às portas das velhas casas, surge fixado sobre uma das paredes da galeria Brotéria, na exposição de Noé Sendas, Goin’ Home. Segura uma pequena folha de papel com a frase escrita: l’Atitude du hasard. A coroar a frase, aparece também um desenho de uma forma quadrilátera que se repete em arco. Induz a um jogo perceptivo: será uma cadeira que se multiplica com o seu espaldar? Ou antes formas que se delineiam sem uma configuração intencional prévia? Serão memórias visuais que se repetem, de um determinado lugar impossibilitado de ser visitado, ou antes garatujas ao acaso?

Sabemos que não é possível conformar uma ideia única de casa. Uma casa pode ser um espaço para viver, um espelho da alma, ou até uma ideia que habita o imaginário. De um certo modo, revisitamos uma casa ou várias na nossa memória. Podem ser casas perdidas/visitadas, ou a primeira que conhecemos em criança e que configurou a ideia única de família. O próprio Vermeer usou a casa como suporte para retratar narrativas sobre sociedade e domesticidade. O trabalho dos artistas também pode invocar o vazio ensurdecedor, o isolamento asfixiante transmitido pelo espaço da casa. Lugar de vivências, por vezes felizes, por vezes irrespiráveis, na verdade conforma o que existe de mais autêntico no humano, sem máscaras, num perpétuo e cru diálogo com o ser, em privado.

Bachelard, na referenciada obra A Poética do Espaço fala da casa como “instrumento de análise para a alma humana, e acrescenta: Não apenas as nossas lembranças, mas também os nossos esquecimentos estão aí alojados. O Nosso inconsciente está alojado. A Nossa alma é uma morada”[1]. Talvez por esse motivo as peças de Noé Sendas surjam como frações de memória, rasgos de sentidos, imagens que emergem incompletas, para no momento imediatamente a seguir desaparecerem nas sombras, como gavetas inacessíveis, onde só podemos perscrutar alguns vestígios fantasmáticos, algumas frases soltas, na medida em que os seus significados surgem em ruptura, comprometidos.

Sendas, segundo a curadora da exposição Ana Anacleto, “tem vindo a desenvolver uma investigação plástica profundamente idiossincrática, centrada na recuperação e reactivação de imagens, objectos, dispositivos ou materiais que – através de pequenos gestos de recomposição – parecem enunciar um imaginário ficcional assente em referências mnemónicas de origens muito distintas. Na sua prática, toda a matéria é documento, todo o documento é simultaneamente ficção, toda a ficção é transversalmente real e todos os elementos presentes (físicos ou imaginários) se configuram, a cada momento, como mecanismos activadores de possíveis relações”[2].

Uma interioridade psicológica na obra de Noé Sendas parece remover-nos da possibilidade interpretativa lógica, e da objetividade de uma potencial narrativa autobiográfica ou até de uma individualidade do artista. A sensação de incompletude, e o enigma, persistem. É ele, o próprio artista, que procura inebriar o observador:  “agrada-me projectar a ideia de que o artista é alguém que lança um glamour, um feitiço que turva o olhar do espectador, e que faz com que as imagens sejam percepcionadas de um outro modo. Aliás é nesse sentido que aplico a técnica da sprezzatura (a arte de velar a arte), que faz com que a imagem final não revele ter sido trabalhada ou que tenha tido uma existência anterior”.[3]

O artista cresceu em ateliers – os próprios pais eram artistas – e, em entrevista a Jean Wainwright[4], referiu que, quando criança, não existiam, penduradas na parede, muitas obras acabadas. O artista habituou-se a ver uma versão dos estúdios dos artistas mais pragmática e absorta na vida diária do que com a formalidade do museu. Por outro lado, Sendas foi um artista que viveu entre várias cidades da europa. Criado em Bruxelas, migrou para Lisboa, depois para Londres. Compreende, por isso, talvez, uma ideia de casa mais polarizada, descontínua, suturada, destoante.

Os desenhos de Noé Sendas transmitem essa fugacidade, mais a transitoriedade que a completude da forma; mais o movimento, o rasto, ou mesmo a perda, no sentido de Didi-Hubberman, do que a representação, como referido por Lara Pires no artigo As séries Crystal Girls e Peeps de Noe Sendas: entre revelação (fotografia) e construção (imagem)[5].

As suas Cristal Girls, de 2009, também compreendiam uma combinação de imagens encontradas[6], e depois manipuladas, fragmentos de corpos glamour, acoplados a formas geométricas estilizadas.

Goin’ Home está patente na Brotéria, em Lisboa, até 15 de janeiro de 2025.

 

[1] Bachelard, G. (2000). A Poética do Espaço. Martins Fontes.
[2] Anacleto, A. (2024). Noé Sendas, Goin’Home. Organização Brotéria (Folha de sala).
[3] Dias, A. (2014). O trabalho de Noé Sendas na Galeria Presença (The Eighteenth January Two Thousand and Fourteen). www.artecapital. net/exposicao-402-noe-sendas-theeighteenth-january-two-thousandand-fourteen.
[4] Noé Sendas: Vanishing Acts, entrevista de Jean Wainwright. https://jeanwainwright.com/noe-sendas-vanishing-acts-with-interview/
[5] Pires, L. V. C. (2016). “As séries Crystal Girls e Peeps de Noe Sendas: entre revelação – fotografia e construção – imagem”. In: Revista Croma, vol. 4, nº 8, pp. 112-116.
[6] Dias, A. Id. Ibid.

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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