Tempo Dobrado de José Maçãs de Carvalho na Casa-Museu Bissaya Barreto
Procurando promover e divulgar práticas artísticas contemporâneas na Casa-Museu Bissaya Barreto em Coimbra (CMBB), a Fundação Bissaya Barreto tem vindo a desenvolver desde o início de 2024, através de convites a artistas contemporâneos, um programa expositivo na Galeria Viriato Namora que agora nos dá a conhecer Tempo Dobrado, de José Maçãs de Carvalho.
Apresentando uma série de fotografias recentes, algumas das quais inéditas, que resultam de uma longa reflexão sobre a natureza da fotografia e a sua prática artística, a exposição explora o conceito de tempo na imagem, procurando transmitir, nas palavras do artista, “uma promessa ou sensação de tempo”. Propondo uma reflexão sobre a fotografia enquanto espaço de tempos sobrepostos, criando o que o autor descreve como “tempo heterogéneo”, onde a acumulação temporal desperta a curiosidade pela imagem fotográfica, deixamo-nos conduzir por uma série de obras cujas diversas camadas – temporais e espaciais – se nos revelam à medida que as observamos.
A este propósito destaquemos o título da exposição – Tempo Dobrado –, proveniente de um verso do poeta Luís Quintais, que evidencia a ideia de duplicação do tempo e do espaço com que nos deparamos nas obras em exibição. Em quase todas, cruzamo-nos com narrativas que contêm outras narrativas dentro de si, num exercício de transtemporalidade que percorre a mostra. Na sala principal da galeria, um conjunto de imagens fotográficas apresentam primeiros planos que nos impedem imediatamente de ver os segundos planos, como se essas primeiras imagens dentro das fotografias duplicassem tempo e espaço, num exercício constante de descoberta de imagens dentro de imagens.
Esse jogo de sobreposições é-nos revelado em Warburg hotel (2022), onde numa paisagem habitacional lemos a palavra Warburg. Se num primeiro contacto com a obra, a inscrição – qual ilusão óptica – parece ter sido realizada sobre a própria fotografia, logo percebemos tratar-se de uma janela embaciada na qual o nome foi inscrito, revelando-o em primeiro plano, numa obra que explora a fragilidade e a efemeridade da palavra-imagem, que porventura desaparecerá deixando-nos apenas a paisagem dos apartamentos, e que ao mesmo tempo remete para a noção de infinitude, de movimento e sobrevivência das imagens proposta pelo historiador de arte Aby Warburg.
A presença quase espectral desta obra e a sua aura fantasmagórica, conseguidas pela importância atribuída à luz e à atmosfera, estendem-se às restantes imagens que pontuam o espaço da galeria. Imagens que nascem do encontro entre o ver e o sentir, que, partindo do real, nos conduzem para o ambíguo, para lugares e tempos em suspensão nos instantes captados pelo artista. Numa procura por cores, texturas, formas e elementos, o autor apresenta-nos imagens oníricas e poéticas carregadas de misticismo e mistério, reveladoras de paisagens e lugares onde diversos elementos se entrecruzam. O universo, o cosmos e a alusão a fenómenos naturais são-nos revelados em S/ título (after A. V. Janssen) (2024) através de jogos de luz e chiaroscuro; harmonias, contrastes cromáticos e de temperaturas contribuem para a criação de uma atmosfera hipnótica e nostálgica que se nos revela numa paisagem exterior, na qual descobrimos, após uma observação mais atenta, o reflexo – como fantasmagoria – de um espaço interior. Destaque para as três fotografias que compõem a série S/ título (after M. Marques) (2024), que nos lançam num mise en abyme, num jogo de ilusões e duplicações que nos fascina e diverte à medida que as percorremos, e em que o único indício da passagem do tempo é nos dado pelo movimento das nuvens no céu.
Numa outra sala, contígua à principal, as obras Beirut 06 (2007) e 9/11 (2022) confrontam o espectador com linguagens visuais e verbais, revelando-nos mensagens que como epígrafes surgem gravadas nas folhas de catos grandiosos. O gesto humano sobre o elemento natural, presente nas fotografias de José Maçãs de Carvalho, transporta-nos para acontecimentos passados – o conflito armado em Beirute no ano de 2006 e o atentado ao World Trade Center em Nova York no ano de 2001 – que, inscritos na pele dos catos, resistem e permanecem para memória futura. De cariz político, as fotografias revelam-nos o poder e a importância da imagem e da palavra enquanto veículos de comunicação, de rememoração e de resistência ao tempo que o artista habilmente associa e alia à natureza tenaz do próprio cato.
A possibilidade de resistência, a importância da palavra, da linguagem e do gesto físico, assim como a temporalidade explorada na prática artística de José Maçãs de Carvalho, voltam a estar presentes na obra videográfica Never Tell a Secret (2004). Numa pequena sala, imersos na escuridão e acompanhados pelo som da água, visionamos, projetado na parede e num loop constante, o gesto permanente do mergulho de uma mulher – e da impossibilidade em tempo real de voltar à superfície – que se dirige a nós, falando-nos debaixo de água, mas cujas palavras não ouvimos. A procura do autor por uma linguagem primordial nos seus filmes, neste caso de um gesto que se repete, gera uma ambiguidade e uma potência daquilo que fica por dizer, numa obra que cria o seu próprio tempo, entre o cinematográfico e o real.
Da fixidez da fotografia ao movimento do vídeo, as obras apresentadas em Tempo Dobrado trazem-nos a expressividade do tempo em imagens que se caraterizam pela harmonia visual, acuidade plástica e nas quais pressentimos uma dimensão de solidão e ausência, um lado de abandono e de suspensão, mesmo quando nos deparamos com uma presença humana – anónima –, como em Pool, pertencente à serie it’s a lonely planet (2007), e que, numa zona de passagem, revela-se como eco visual a Never Tell a Secret.
Recoletor de imagens e colecionador de histórias breves, José Maçãs de Carvalho transporta-nos nesta exposição para uma promessa e sensação de tempo, um tempo dobrado feito de adições e de fragmentos, relembrando-nos que há sempre mais a ver e a descobrir.
Tempo Dobrado está patente na Casa-Museu Bissaya Barreto, em Coimbra, até 1 de fevereiro de 2025.