Arte Povera na Bolsa do Comércio, em Paris
“Um homem escala uma montanha porque ela está lá.
Um homem cria uma obra de arte porque ela não está lá.”
Carl Andre, em Arte Povera (1969)
O artista-alquimista é aquele que aspira viver, e não ver. Ele escolheu a matéria no lugar da representação. Seu maravilhamento está na aparente banalidade dos fenômenos ecológicos e biológicos, e não no que a discussão intelectual pode provocar. O artista-alquimista prefere deixar intacta a essência das coisas, das plantas, dos animais, para se sentir parte dessa unidade, sentir vitalidade, para não achar que está sozinho nesse mundo. E, ao mesmo tempo em que ele ou ela descobre a mágica das reações e composições químicas, da inexorabilidade do tempo (tudo nasce, floresce e morre), da precariedade do material, e, porque não, da realidade, eles descobrem a si mesmos. Relegam seu papel intelectual, de pintor ou escritor, para aprender a perceber, sentir, respirar, andar. A entender o que faz de si um ser humano.
É só referenciando o belíssimo texto de 1969 de Germano Celant que entendemos o que ele quis dizer com o movimento da arte pobre, cujas obras agora ocupam toda a Bourse de Commerce-Collection Pinault de Paris, em uma das exposições mais comentadas da temporada. O curador italiano cunhou o termo “Arte Povera” dois anos antes, quando também organizou a primeira exposição dessa tendência. Ele identificou pouco mais de uma dezena de artistas italianos – na retrospectiva de Paris são exatamente 13 – que utilizavam materiais comuns e humildes, e técnicas simples frequentemente empregadas por artesãos ou trabalhadores do dia-a-dia. De bordado, encardenação e sopro de vidro a práticas como acender uma fogueira, pentear lã de colchões e fazer trabalhos de carpintaria. Eles enalteciam a matéria, o humilde, na tentativa de construir um testemunho físico do mundo, e não uma análise sobre ele.
Era o contrário da arte pop, que incorporava a produção em série, representação da imagem, status e rebeldia. Também questionava o minimalismo dos norte-americanos, em que a ideia era mais importante do que o objeto de arte, que poderia – e deveria – ser feito industrialmente. Eram artistas que, no contexto do “Milagre Econômico” da Itália desde o final da Segunda Guerra Mundial, com a industrialização do país e a mecanização do trabalho, queriam olhar para a história do próprio país para celebrar o manual e o que deveria ser primordial para o ser humano. A energia e a transformação da matéria eram importantes para eles, assim como a memória e as emoções.
De pobre esta arte não tem nada, já que ela tem muito a dizer. Porque eles usavam materiais naturais ou rurais, como terra, batatas, salada, água, carvão, galhos, árvores, corpos vivos de animais, o nome pareceu adequado. Mas eles também usavam materiais artificiais ou urbanos, como ferramentas, andaimes de metal, placas de aço, chumbo, lâmpadas, vigas de madeira, tubos de neón, enaltecendo a complementação entre esses dois mundos.
Esse pensamento é quase didático na obra O terceito paraíso de Michelangelo Pistolleto (1933), que, ao símbolo do inifinto, adicionou um terceiro círculo central: de um lado, está a natureza, do outro o mundo artificial, e, no centro, a humanidade. Provavelmente o mais conhecido entre os artistas da Arte Povera, muito por conta das suas chamativas obras com pilhas de roupas e espelhos que estão expostas em peso na Collection Pinaut, o artista continua em plena produção, e comanda a Cittadellarte, fundação superpoderosa das artes. É claro que esses artistas também desafiavam os padrões do que é belo, e do que poderia ser considerado obra de arte.
A Arte Povera também se afastou da pintura para produzir instalações, obras tridimensionais que estão no nosso universo, fazem parte dele, já que nós exergamos o mundo tridimensionalmente e não bidimensionalmente. Suas intalações respiram o nosso ar. E Jannis Kounellis (1936-2017) foi um gigante da instalação, que misturou chapas de metal, cabelo, livros, café, roupas, armários e vigas de mandeira em obras sempre instigantes. Ao mesmo tempo em que os materiais se contradizem, nas suas combinações, parecem ter sido feitos um para outro. Diversas das suas obras estão espalhadas pela exposição, como Untitled (1967), uma chapa de metal no chão, repleta de carvão, que alude aos materiais principais da revolução industrial e a origem do mundo: calor, transformação da matéria, fogo e energia.
Na impecável rotunda central da Bolsa do Comércio – prédio do século 16 que foi meticulosamente transformado pelo arquiteto Tadao Ando –, instalações de todos os artistas da Arte Povera são apresentadas juntas. São eles: Giovanni Anselmo, Alighiero Boetti, Pier Paolo Calzolari, Luciano Fabro, Jannis Kounellis, Mario Merz, Marisa Merz, Giulio Paolini, Pino Pascali, Giuseppe Penone, Michelangelo Pistoletto, Emilio Prini e Gilberto Zorio (note que apenas uma mulher fez parte do movimento). Nas diversas salas adjacentes, a obra de cada um desses artistas é apresentada com mais profundidade, assim como peças de outros artistas contemporâneos influenciados por eles, totalizando 250 trabalhos.
A responsável por essa retrospectiva gigante, um tanto cansativa e, por vezes, desconexa, é a curadora é Carolyn Christov-Bakargiev, historiadora da arte e curadora com um currículo impressionante. Ela foi diretora do Castello di Rivoli Museo d’Arte Contemporanea em Torino, e diretora artística da documenta 13 (2012). A ítalo-americana é conhecida por ser uma das maiores especialistas vivas em Arte Povera, mas parece não ter feito qualquer processo de seleção para a Collection Pinault. Ela prezou pela quantidade, e não tanto pela qualidade, o que faz muitos dos trabalhos serem apresentados sem contexto ou narrativa, como se tivessem caído ali por engano.
Mas o maior ponto contra a sua curadoria é que ela não tentou trazer o movimento de 1960 para 2024. Uma das grandes tarefas de um curador é mostrar a relevância das obras para a contemporaneidade. Na sua narrativa, o movimento da Arte Povera é passado, sendo que agora, mais do que nunca, estamos discutindo sustentabilidade, mudanças climáticas e a destruição do planeta terra pelo ser humano. A devastação da natureza não era uma preocupação no contexto dos artistas da Arte Povera. Conceitos como “Antropoceno”, que designa uma nova época geológica caracterizada pelo impacto do homem na Terra, foi criado apenas nos anos 2000 e popularizado mais recentemente. Ainda sim, seus pensamentos do vínculo entre homem e natureza podem ser muito bem explorados e usados na nossa realidade contemporânea. Isso sem contar que eles já estavam prezando por trabalhos manuais e trazendo o artesanato para a arte, outra tendência recente da arte contemporânea no mundo todo.
Quem olha o prédio de fora, encontra Idee di pietra—1532 kg di luce, de Giuseppe Penone (1947), uma árvore gigante com pesadas pedras em seus galhos. Os troncos são muito característicos das obras desse artista, que cunha árvores em bronze para congelar o tempo. Normalmente expostas em meio à natureza (em Paris, por exemplo, um dos seus troncos caídos está no Jardin des Tuileries), elas atentam ao fato de que toda a paisagem vai florescer e morrer, menos aquele objeto criado pelo homem. É um poético elogio ao equilíbrio.
Conhecido pelo seus inglus, habitações de gelo que mantem o calor necessário para a vida, Mario Merz (1935-2003) comenta sobre as condições primordiais da existência, e cria uma metáfora das relações entre o interior e o exterior dessas casas. Feitas com os mais diversos materiais – na exposição via-se uma feita de vidro, metal e galho de árvore toscamente agarrados –, eles são espaços arquitetônicos vitais.
Marisa Merz (1926-2019), que contribuiu bastante para o trabalho do seu marido, foi marginalizada pelo grupo por ser mulher. Ela usava fio de cobre, parafina, pedaços de madeira e papelão para costurar suas esculturas, que, aliados aos seus desenhos e pinturas de mulheres, produzem trabalhos intimistas e com um quê de uma busca espiritual. Também na exposição, ela é apresentada quase como se fosse dispensável, contrariando o Leão de Ouro que ganhou na Bienal de Veneza de 2013 pelo conjunto da sua obra produzida ao longo de toda sua vida.
Parafraseando Germano Celant, o artista-alquimista faz mágica porque, para criar arte, ele se identifica com a vida. E existir significa reiventar a todo momento uma nova fantasia.
Arte Povera, na Bolsa do Comércio de Paris, está patente até 20 de janeiro de 2025.