Contorcer para ser ou tornar-se
Compreender na totalidade ou procurar traduzir e desmaterializar o que reside por detrás do trabalho do artista José Loureiro, assim como tentar justificar as suas escolhas ou a ausência delas — o ir por aqui e não ir por ali —, revela-se uma tarefa hercúlea, ingrata, desprovida de sentido, diria até. Enfrentar essa empreitada, procurar justificar a sua mecânica do gesto, as questões de escala, a síntese dos movimentos e a autonomia da cor seria confrontar-me com o fracasso. Proponho que se encare este texto da mesma forma que encarei esta tarefa — a abrir algumas portas, a fechar outras, a espreitar e seguir caminho. Numa tentativa de chegar ao fim (da questão e do mundo) e, ainda assim, encontrar um novo caminho (um beco, o das Flores), num exercício que nos leva a descobrir sempre “uma coisa dentro de uma coisa, dentro de outra coisa”[1].
Narcisos. Comecemos por pensar estas figuras alongadas que parecem ter sido atingidas por um raio[2]. Limitadas pelas margens da tela, e, talvez, por mais alguma coisa que desconhecemos, únicas, com energia própria, apresentam-se num estado de suspensão, num limiar entre a matéria organizada e o caos, como se os seus destinos fossem continuamente adiados. Remetem-nos, naturalmente, para a história do que sucumbe à vaidade e ao amor por si mesmo. Remetem-nos à questão da obsessão, da identidade, do ego, do reflexo distorcido da realidade, da crise, do falível e, talvez, da auto-descoberta. Trata-se de um jogo complexo de desdobramentos onde o que é reflectido se desestabiliza. Um mostra Destreza (2024), outro Narciso enverga a primeira gravata (2024), outro depara-se com a Descoberta da pólvora (2024)… Em conjunto, mostram uma aparência, ou um conjunto de aparências, de propostas de realidade, que são subtraídas de algum lugar, de algum momento. 16 figuras, em estado de tensão, mutáveis e inacabadas indefinidas, procuram acomodar-se ou escapar. É difícil afirmar com certeza, mas não me parece relevante encontrar uma resposta. Seja o que for, retorcem-se numa coreografia enigmática, empenhadas em metamorfosear-se em algo que permanece inominável. O destino dessa transformação, desconhecido, parece menos relevante do que o próprio processo. Assistimos ao desejo de sair ou à resignação em ficar. O ser ou o tornar-se. Um estado de suspensão que é amplificado pelo gesto de Loureiro.
Compartilham um vocabulário formal comum. São troncos que se alongam para braços e pernas, que se alongam para mãos e pés que terminam em unhas “garridas, como pontos finais”[3]. Em poses inquietas, que evocam a ironia e a tensão do existir, são construídas através do negro visceral que surge como um fluxo contínuo, contornando outros elementos policromados de riscas e outros padrões que gritam, arrumados e bem definidos. Somos, nesta exposição, testemunhas de um aparente processo contínuo de ajuste, um ciclo interminável de tentativa e erro que é acentuado pelo alongamento das formas, que se expandem verticalmente ou horizontalmente, reflectindo um estado de luta, um esforço para se definirem num espaço que parece sempre insuficiente para as dores de crescimento.
Também o fim das estradas. Falemos disso, do título da exposição. Podemos olhar Beco das Flores, Canedo do Mato como um convite à reflexão acerca dos limites, da existência e da percepção. Aldeia perto do lugar onde o artista nasceu — Mangualde —, onde todas as estradas terminam, assume aqui um papel simbólico: representa o fim do caminho, o limite físico e metafórico. É, paradoxalmente, um lugar de término e de revelação, onde a possibilidade de reflectir — sobre o mundo, sobre nós mesmos — se amplifica. “Mesmo no fim do mundo, tudo pode existir ou acabar, tudo pode ser reflectido. Vamos a Canedo do Mato para nos podermos ver, para nos revermos, mas o reflexo é alguma coisa aumentada imaterialmente, não corresponde à realidade.”[4]
Nesse espaço liminal, onde o mundo encontra um fim, surge, ainda, o Beco das Flores. O beco dentro do fim, um fim dentro do fim, subverte a ideia de completude: mesmo onde tudo parece convergir para um encerramento, há, ainda, um desdobramento adicional. Este espaço, que se advinha reduzido, apertado e sem saída, carrega um sentido de reverberação infinita. É, como o universo dos Narcisos, um espaço de multiplicidade, onde o fim é duplicado, intensificado — é um estado suspenso. A ideia de ir a Canedo do Mato “para nos revermos” remete também ao reflexo na água evocado no mito de Narciso. É uma experiência de auto-reconhecimento, mas também de alienação. Vemo-nos, mas nunca exactamente como somos; o reflexo é sempre outro, ampliado ou distorcido. É como se lá, onde tudo termina, o reflexo assumisse uma dimensão de transcendência: somos confrontados não com o que somos, mas com o que poderíamos ser, com a possibilidade de transformação e multiplicidade. O Beco das Flores, tal como esta exposição, é, assim, ao mesmo tempo, um espaço de fim e de começo, um lugar onde a finitude convive com a possibilidade de expansão. É uma coisa dentro de outra coisa, onde os limites do mundo revelam novos horizontes de contemplação e experiência. Evoca uma condição existencial, uma espécie de convite à reflexão sobre o fim como um espaço de transição, sobre a realidade como algo sempre além do visível, e sobre nós mesmos como reflexos inacabados de uma identidade em perpétua transformação, como as figuras de Loureiro.
A galeria transforma-se num lugar onde todas as estradas terminam, mas, também, num lugar onde todas as possibilidades de percurso — mesmo que ilusórias, como num reflexo — se desdobram. É, no fim, uma possível reflexão sobre a circularidade da vida e sobre os limites da compreensão humana. Uma hesitação calculada, uma aporia, sem saída, que propõe novas formas de pensamento e compreensão. Aqui, as coisas tornam-se estranhas a si mesmas, a identidade é desestabilizada e excede os limites do sujeito e da representação. É sentido um apelo ao esvaziamento através da indeterminação. Somos lançados para fora de nós mesmos, confrontados com a possibilidade (ou impossibilidade) de nos fixarmos num ponto estável.
Aguardemos a vez para desfilar no Beco das Flores, Canedo do Mato[5], e lembremo-nos: há sempre espaço para o desdobramento — do corpo, do gesto e, acima de tudo, do entendimento.
A exposição pode ser visitada até dia 11 de Janeiro de 2025, na Galeria Cristina Guerra.
Nota: a autora não escreve sob o abrigo do AO.
[1] José Loureiro em conversa sobre a exposição.
[2] In the Shade of a Tree, José Loureiro: Croque-couleur – Les presses du réel, 2024 – pág. 25. Edição publicada por ocasião da exposição em Frac Grand Large, Dunquerque.
[3] José Loureiro em conversa sobre a exposição.
[4] José Loureiro a propósito da exposição.
[5] Texto da folha de sala, por José Loureiro.