Endless sun de Hugo de Almeida Pinho – Parte II: Capital Blindness nas Carpintarias de São Lázaro
“O Sol dá sem nunca receber. Os Homens consciencializaram-se disto muito antes de os astrofísicos medirem essa prodigalidade incessante; viam-no amadurecer as colheitas e associavam o seu esplendor com o ato de alguém que dá sem receber.”[1]
Para Georges Bataille, o Sol materializa o excesso energético que conduz e permite toda a economia geral cuja análise o autor propõe. O Sol é precisamente puro excesso que, direcionado à Terra, poderá apenas parcialmente ser absorvido nas diversas mutações (sociais, económicas, biológicas, …) que de igual forma excesso produzirão. Possui uma natureza paradoxal onde encontramos igualmente a fonte de toda a vida e beleza, e a origem da destruição mais certa, não só no calor que emana do qual apenas uma pequeníssima fração sentimos, mas também, e mais radicalmente, no simples ato de para ele olhar. Bataille traça esta narrativa já ao mito de Ícaro, que divide o Sol em dois: “o que brilhava no momento da elevação de Ícaro, e o que derreteu a cera…”[2]. Esta essência contraditória, mas cujo lado mais incandescente é priorizado pelo autor, ditará precisamente uma economia energética cujo percurso Bataille traçará a todas as trocas e transformações humanas, encontrando no Sol, na sua energia despendida, o ato de dar sem receber que permitirá todos os consequentes. É precisamente neste sentido que o Sol pode ser o mais abstrato de todos os objetos, ou, simbolicamente, a própria abstração em si, aquele que nunca ninguém viu.
A proposta de Hugo de Almeida Pinho parte precisamente deste objeto, de figurar aquele que não pode ser visto, apenas pode, como o próprio refere, ser observado através de algum tipo de mediação. A exposição, Endless Sun: Capital Blindness, atualmente patente nas Carpintarias de São Lázaro, em Lisboa, é a segunda parte do projeto Endless Sun, com projeto curatorial de Paulo Mendes e cuja primeira parte Endless Sun: The Cinematic Sunrise está exposta no gnration, em Braga. Resulta de um longo processo de investigação, em que o artista visitou locais como o complexo solar Noor, em Ouarzazate, Marrocos, o laboratório Synlight, em Jülich, Alemanha, e o OGAUC em Coimbra, documentando estes contactos em várias peças através de fotografias e vídeos. Este diálogo com as instituições e os processos científicos dedicados a estudar este objeto, a construir as mediações que nos permitem observá-lo de alguma forma, é muito evidente ao longo da exposição, nomeadamente em Solar Capital, Noor II e Noor III, por exemplo, onde, o protagonista, ao invés de ser o Sol, torna-se as próprias estruturas que nos permitem entrar em contacto com ele. Ora, é precisamente num diálogo paralelo, em que o artista reconhece e utiliza estas expressões em seu proveito, que Hugo de Almeida Pinho se propõe a fazer o mesmo, a fazer-nos ver aquele que não pode ser visto. A sua forma de o permitir será certamente diferente da das instituições que visitou, não se regerá por precisões e exatidões científicas com objetivos delineados por causalidades concretas, mas antes por uma vontade de explorar plasticamente as dimensões físicas, químicas, políticas ou psíquicas contidas na figura em questão. Uma escolha certamente recorrente para tal vemos no trabalho constante da imagem projetada, seja em película ou digitalmente – a imagem que surge precisamente da luz. Se a própria projeção de luz, e respetiva produção de significado, pode ser paralelizada com uma distribuição energética proveniente do Sol e que se dissipa nas concretudes terrestres, esta relação torna-se particularmente evidente ao atentarmos por exemplo em Celóstato, onde a projeção em 16mm de 30 metros encontra-se literalmente segura num vértice de enorme altitude: olhar para a origem destas imagens obriga-nos a olhar para o alto. Outro exemplo encontra-se no piso de baixo das Carpintarias, em Estado de Exceção, que associa à projeção de slides de imagens solares uma estrutura circular de latão rotativa que oscila entre a ocultação e a permissão da projeção, entre a noite e o dia.
Se a relação com o Sol pode ser, como referimos, precisamente dividida em dois processos antagónicos, ou seja, filosoficamente, como clarificação das ideias e fonte do iluminismo, ou como a raiz produtora do excesso libidinal de Bataille, os elementos expositivos parecem delinear efetivamente esses dois percursos. Conjugando, por um lado, mediações com o Sol provenientes de claras referências científicas (seja em Solar Capital, Desenho Solar, Noor II, Noor III ou This thing called solarity, por exemplo), peças como Imobilizado, duas estruturas em ferro pintado, parecem referenciar uma relação cerimonial que se assemelha à dos povos astecas com o excesso, como referenciado por Bataille. Precisamente, estas estruturas encontram-se por baixo da enorme Solrad, uma gigante escultura do Sol presa ao teto. A natureza dual da relação humana com o Sol torna-se clara: “O sol é a pura iluminação que seria simultânea com a verdade, a solidariedade perfeita do saber com o real, a identidade da exterioridade e a sua manifestação. Contemplar o sol seria a confirmação definitiva de iluminação. (…) Misturado com esta radiação nutritiva, como seu próprio coração, está o outro sol, o mais profundo, negro e contagiante (…) Deste segundo sol – o sol da maldição – recebemos não iluminação mas doença, pois tudo o que desperdiça connosco estamos, por sua vez, destinados a desperdiçar.”[3] Numa referenciação mais direta, o próprio título Visions of Excess nomeia três peças de ferro pintado (duas delas que suportam impressões) onde a visão do tal excesso parece estar associada à visão deste objeto resultante do ato metalúrgico, talvez o mais próximo de uma manipulação literal de uma matéria solar. Aliás, quando atentamos na série The sun is neither a master, nor a slave. The sun is a comrade, vemos peças de ferro onde em cada uma o Sol é figurado e pintado de forma distinta, e onde a própria formação de uma forma em ferro parece surgir como a luz emanada pelo Sol: do Sol, surge o ferro; do Sol, surge a forma (em ferro). Para os dois pisos das Carpintarias, o artista Jonathan Uliel Saldanha compôs duas peças sonoras distintas e inéditas, desenvolvidas especificamente para esta exposição e em diálogo directo com as obras de Hugo de Almeida Pinho.
Lembremos então a importância que Reza Negarestani direciona para a abolição do heliocentrismo, ou seja, da escravatura do Humano perante o Sol como elemento representativo de uma exterioridade absoluta (seja ela a razão ou o excesso). A procura por emancipação ecológica passaria pela necessidade de procurar uma nova exterioridade, contingente, pois a dialética Terra/Sol seria indicativa de uma relação mais geral: “sejam identificados como caminhos de abertura radical (caminhos para nos soltarmos para o abismo) ou inflexão perante negatividade não-dialética (morrer de formas diferentes daquelas concedidas pelo organismo), formas alternativas de vincular exterioridade mobilizam a esfera terrestre de acordo com climas do abismo cósmico.”[4] Ora, o confronto entre criação artística e cosmologia solar proposto por Hugo de Almeida Pinho, ao multiplicar o Sol em diversas representações, traz a alteridade a este espaço de contacto: uma ecologia “baseada nos poderes unilaterais das contingências cósmicas”[5], onde o próprio ato de procurar diversas figurações para o que não pode ser visto, de confrontar a absoluta abstração com a capacidade de a concretizar em significações, incorpora o espaço de maior possibilidade de reorganização, o da criação. Seria esta talvez, independentemente do seu tema, sempre a criação de um novo Sol…
Endless Sun: Capital Blindness está patente nas Carpintarias de São Lázaro até 16 de fevereiro de 2025.
[1] Bataille, G. (1988). The Accursed Share: An Essay on General Economy, Vol. 1: Consumption, pp. 28-29. Tradução livre.[2] Bataille, G. (2004). Visions of Excess: Selected Writings, 1927-1939, p. 58. Tradução livre.
[3] Land, N. (2005). The Thirst for Annihilation, p. 20. Tradução livre.
[4] Negarestani, R. (2010). Solar Inferno or the Earthbound Abyss, p. 3. Tradução livre.
[5] Negarestani, R. (2010). Solar Inferno or the Earthbound Abyss, p. 6. Tradução livre