Como poeira sobre vidro
Na cosmogonia criada por Tolkien em seu Silmarillion, o mundo foi cantando à existência pelo coro dos espíritos Ainur, manifestando todas as coisas. “E a música e o eco da música projetaram-se sobre o vazio, e ele não estava vazio”.[1] Também a Música das Esferas, dulcíssima sinfonia composta pela moção planetária, foi nos séculos de outrora creditada como a guia de um universo perfeito todo acústico que dança, desde os astros aos vermes, ao compasso desta melodia inaudita aos nossos parcos ouvidos. “Para a tradição pitagórica, a alma e o corpo do homem estão sujeitos às mesmas leis que regulam os fenómenos musicais, e estas mesmas proporções se encontram na harmonia do cosmos”, escreve Umberto Eco.[2] Talvez tenha Da Vinci captado tal harmónica melodia quando percebeu os padrões de poeira, como “vales e pequenas montanhas”, dispostos sobre a mesa golpeada com a própria mão. Também em seus desenhos de tempestades e cabelos, investigava os padrões fundamentais da natureza, quem sabe melódicos. Depois foi Robert Hooke quem, pousando farinha num prato de vidro nas bordas vibrado por um arco de violino, contemplou como cada frequência sonora gerava um desenho específico.
Tais padrões revelam-nos como a música formaliza a matéria de um universo todo curvo: as frequências sonoras vibram como ondas para organizar a existência num entrelaço de complexos desenhos. Quando atingidas, superfícies palpitam de acordo com seus estímulos vibratórios — como na mesa de Leonardo, apenas as partes que não se movem acolhem poeira, desenhando os ditos vales e montanhas: o revelado é justo a ausência da energia, que atravessa os espaços vazios do desenho. Se os gregos viam o cosmos como fenómeno fechado de partes em perfeita harmonia, talvez com certo entusiasmo aceitariam os padrões simétricos criados em farinha por Hooke, cuja estrutura parece de fato refletir a composição estrutural de uma série de fenómenos naturais, desde as cerdas das bactérias até a distribuição planetária das galáxias. Seriam todas as coisas apenas resíduos materiais nas bordas das ondas sonoras? Se nas figuras de Hooke a energia é justo os vazios entre as ténues linhas de farinha, em Platão a energia geradora da matéria seria, ela própria, imaterial: Khora, substância originária equilibrada entre o sensível e o inteligível por onde tudo passa, mas nada é retido.
Também os recortes de Claire de Santa Coloma mantêm o perfurado como essência — em sua mostra Eclipse, na 3+1 Arte Contemporânea, assim como no modelo universal, é o invisível que molda o visível. Na série de obras Sem título, são os poros, e as fibras de papel entre eles tensionadas, que sustentam a forma geral de uma ondulada composição que evoca o entrelaço de frequências essenciais do sonido cósmico. Nas figuras de Hooke, quão mais alta a ressonância, mais complexo o padrão. Como estruturas de frequências demasiado altas para nossos ouvidos, a complexidade na composição de Santa Coloma, no entanto, sustenta um panorama geral de perfeita clareza: sua assertiva harmonia contrasta com a frágil assimetria dos fios de papel entre os vazios — o desprazer nascido de nossa incompreensão é redimido no deleite das formas perfeitas. No decorrer da série, tais abóbadas logo entrelaçam-se em formas mais turvas e abertas. Se o Belo compõe formas impecáveis, o Sublime quebra-as em prol de uma expansão ao infinito — mesmo o mais sólido mundo convive com a fragilidade de suas construções. Este cosmos de formas compactas e dispersas é como a respiração de um deus neoplatónico que primeiro expira o todo até o limite do caos para então inspirá-lo de volta à perfeição formal. Também as ondas sonoras que moldam os fenómenos pendulam entre a ordem e o detrito. Primeiro promessa, depois ruína, a beleza sempre morre: é demasiado fixa para um real todo energia em movimento.
A Teoria do Caos também entende todo processo natural como de início perfeito e fim caótico, pois contempla um universo sustentado por infinitos pormenores cuja menor alteração acarreta monumentais consequências, impossibilitando qualquer previsão exata sobre o futuro. Embora harmónica, a realidade é complexa demais para ser compreendida — sua coesão nunca conserva a constância necessária para permitir-nos o cálculo. A entropia tributa todos os instantes da existência, e logo a orgia de circunstâncias subverte o imaculado começo. Este estranho desamparo de sentirmo-nos perdidos numa casa ordenada é, no entanto, matizado por uma humilde alegria que ao menos se encanta com a distante ideia da perfeição. Inaudita, a Música das Esferas atravessa-nos sem perturbar o silêncio de nossa angústia. Assim como na Teoria do Caos, nas obras de Santa Coloma a ruptura da menor fibra de papel arruinaria a delicada solidez de suas composições numa catástrofe cósmica não ao todo distinta de um eclipse planetário, cuja dramática espontaneidade em tantas culturas representou a perturbação da harmonia celestial. Haveria aqui uma crítica à fragilidade de nossas interpretações, quando julgamos ver arcos perfeitos num cosmos de linhas tortas?
Mas ao invés de inesperado transtorno, talvez os eclipses pertençam ao previsível ciclo cósmico: o deus sol é liquidado pela penumbra para renascer em renovado brilho. Tal evento é o paradigma da fricção presente mesmo no mais banal dos contactos, nas obras de Santa Coloma representada pelas linhas eletrizadas entre os poros, ou no horizonte tensionado da obra Untitled (Touch). Este contacto entre esferas é a essência do nosso cosmos vibrante de desejo: em cada mínimo toque, ele destrói-se e recria-se por inteiro, pois o todo é apenas a soma final de pequenas interações em cadeia — o eclipse solar quebra o impecável arco astral para ensinar a cada gesto como reinventar a vida.
Neste sentido, a série de Santa Coloma explora o choque que contém toda a história do universo, desde a voltagem preliminar até a dispersão final — de seu ápice não à toa em forma de vulva, na obra Untitled (Flower), brota talvez o ovo primordial Pebble, pousado no piso da galeria à sua frente. Se contemplar é regressar da atual variedade ao absoluto original, nele sentam-nos para explorar a nossa origem, entrevendo na série de obras Untitled as forças que formalizam o visível. O calado desabrochar de todas as coisas, embora pujante, é apenas manifesto quando enfim percebido pela consciência por ele gerada: o valor da causa é outorgado pela consequência, que valida o seu esforço. Seria o humano não esta criatura sem rumo, mas a flor do universo, a limitada lucidez que admira, se não o todo, ao menos a fibra que lhe cabe deste deslumbrante projeto? Pois embora pequena seja a sua percepção, ela é, no entanto, verdadeira, contendo assim espaço o bastante para ensaiar a redenção de tudo o que há. Silenciosa é a Música das Esferas, mas nos momentos da mais impactante inspiração talvez dela captemos notas soltas ou mesmo um breve fraseado que contenha a ária de nosso despertar.
A obra Beach apresenta-nos o apogeu da solidez cósmica como delicada sinfonia de formas distintas. Se a série Untitled apresenta-nos o princípio da vida com uma contenção típica do Belo, os fenómenos por ela criados são aqui assimétricos e rudimentares pois já afetados pela entropia que a tudo turva em pura energia, ou Khora platónica — o processo da artista de fato parece consistir em lixar os objetos não para repensar as suas formas naturais mas justo para explicitá-las: são nada mais que energia assentada neste débil momento entre a construção e a destruição. Ao evoca o limiar entre a confiança no conhecido e a turbulenta riqueza do porvir, também o nome Beach reforça que sua suposta estabilidade persistirá por nada mais que um instante. Ou estaria todo o tempo contido neste ténue momento de equilíbrio perfeito? Como nesta obra de distintos objetos em eterna rotação, também no cosmos jamais um fenómeno é como o outro — cada coisa é em si um universo gerado por inúmeras variáveis durando menos que um átimo. Pois nada cessa de se alterar: o cosmos renova no entrelaço vibratório de cada segundo, como se no arco do violino vibrassem o prato de vidro que contém todas as coisas, do começo ao fim apenas sucessivos padrões de poeira e vazio.
Eclipse de Claire de Santa Coloma está patente na 3+1 Arte Contemporânea, em Lisboa, até 11 de janeiro de 2025.
[1] Tolkien, J.R.R. (1989). The Silmarillion. Ballantine Books, p. 4.
[2] Eco, Umberto. (2022). História da Beleza. Editora Record, p. 82.