Técnica mista sobre papel #8: O pão do Salvador
Esta altura do ano não é fácil. Entre a excitação do reencontro, o balanço do mundo interno e externo, as obrigações familiares e um ano fiscal a acabar, sobra uma enorme e retumbante neura. É preciso que venha a neura, constato todos os anos. Porque é a neura que arranca os pensamentos interiores e mete-os por ordem alfabética. Há quem faça listas de melhores do ano por categoria, há quem faça desejos para o próximo ano, há quem escreva cartas e postais de natal. A ideia é sempre semelhante: sistematizar e pensar o que se passou nos últimos 365 dias, desejar melhor para os próximos mesmos dias. É que se há uns anos parecia que cada próximo ano seria melhor, saímos já há uns tempos da evolução hegeliana. O próximo ano é uma valente neura.
Na época das festas surgem-me sempre muitas situações díspares. Os familiares que já não existem e o vazio que se tenta ocupar, os amigos que não têm família, os que estão longe da família. Também os que criam novas famílias, os bebés que vêm a caminho, a vida a acontecer porque parar também não é humano. Penso também, inevitavelmente, nos amigos que partiram, os que desejaram partir e nos deixam as dúvidas e a existência; os que partiram antes do tempo, revoltosamente. Desejo a melhor saúde dos que me são próximos, mas como os desejos são infinitos e imateriais, manifesto-os para o global. Porque não… Nesta sistematização de balanço dos meus afectos, penso na mundividência exterior. Penso nos direitos fundamentais, no tombo que se avizinha. Penso no pão. Estamos numa altura histórica em que se pensa mesmo no pão, entre searas de trigo incendiadas há mais de dois anos no que se chama o celeiro da Europa, e o quanto custa ganhar o pão. E dou por mim a relembrar-me de um amigo, que um dia numa festa de anos minha há umas décadas, viu um pão gigante em cima da mesa e disse: “Que grande pão! Lembra aquela pintura do Dalí”. Ninguém sabia do que ele estava a falar, e a comunicação era já rápida, mas não imediata.
Um dia depois recebi uma fotografia num post de Facebook, que na altura não daria o significado que hoje entendo. Uma pintura de um pão, em chiaroscuro dramático, que vinha com a seguinte nota: “O pão do Salvador”. Um gracejo maravilhoso desta pessoa, a aludir ao meu apelido e o nome próprio do pintor. Nestes dias, depois de escrever sobre manteiga, e a neura a começar a subir à superfície neste countdown de final do ano, lembrei-me de pão. Ao pensar sobre pão, veio à memória, como se tivesse sido anteontem o meu aniversário, o pão do Salvador. Os jogos mnemónicos são difusos e não surgem catalogados. Pensei no meu amigo, nas coisas que deviam ser garantidas, pensei no pão.
O pão do Salvador, cujo nome verdadeiro e acertado é The Basket of Bread (La cesta de pan) é uma história surreal. E olha para mim a usar surreal para escrever sobre um autor que foi percursor do surrealismo. Foi isso que nos deixou atarantados na interpelação de um pão em cima de uma mesa que, de repente, tinha parecenças com uma pintura do Dalí. É que é mesmo esse o espanto. Não há objectos fora do âmbito, ou derretimentos de superfícies ou relógios com horas a passar. É uma pintura depurada de um pão representado de forma realista, à beira de uma mesa, fundo escuro, com uma breve claridade a incidir sobre a crosta clara de um pão. De dimensões pequenas (33 x 38 cm), é uma natureza-morta clássica, bela, melancólica. Mas há dois pormenores que retiram o classicismo a esta representação. A data e o autor. Foi pintada em 1945 e, segundo Dalí, terminada um dia antes do fim da segunda guerra mundial. O pão está à beira de uma mesa, numa acção que ficou suspensa. O pão pode desequilibrar-se a qualquer momento, cair no vazio, o fim de uma ordem. Dalí dedicou-se a esta pintura durante dois meses consecutivos, quatro horas por dia. Durante esse período, como o próprio revela, “os mais surpreendentes e sensacionais episódios da história contemporânea ocorreram”.
A pintura tem um subtítulo: Rather Death Than Shame. Hitler suicidou-se, evitando a sua decadência. Dalí advogou também que se encontrava a pintar esta obra quando as bombas atómicas caíram sobre território japonês. Dalí queria a imobilidade de um objecto pré-explosivo. De repente, este pão parece tudo menos um pão. Um pão conta a história toda da humanidade, se me quisesse levar pelas narrativas de Dalí. Em termos histórico-artísticos, o pão, quando representado, é símbolo de fecundidade, abundância, fertilidade. É isso que se celebra em povoações por todo o mundo, é isso que nos aterroriza nas misérias do mundo. O pão tem ressonância na vida de quase todas as nações. Ter pão é ter acesso. Ter pão é sinal de sobrevivência assegurada. E de repente, o pão do Salvador faz-me pensar na revolucionária e assertiva visão deste amigo. Que já via no pão a metáfora do que se deve assegurar, das lições que pode encerrar, e do que está em risco de se perder. Vem aí um novo ano. Que tenhamos pão. Pão que nos dê as lições que precisamos e pão que nos ensine a olhar e entrever muito além dos nossos tempos. Na realidade, estamos todos numa cesta de pão à beira de uma mesa, rumo ao salto no escuro. O Dalí lá sabia. Foi um salto de 80 anos de História que entretanto se fez.
Nota: a autora não escreve sob o abrigo do AO90.