Ana Vieira: Cadernos de montagem no Centro de Arte de Oliva
Em exibição no Centro de Arte de Oliva (São João da Madeira), a exposição Ana Vieira: Cadernos de montagem apresenta-nos um olhar retrospetivo sobre um conjunto de obras – instalações, objetos, desenhos e anotações – criadas pela artista entre 1977 e 2014. Com curadoria de Antonia Gaeta, da arquiteta Astrid Suzano e da investigadora e conservadora Sofia Gomes, com a colaboração do Banco de Arte Contemporânea (BAC) e dos herdeiros do espólio artístico e documental de Ana Vieira (1940-2016), os seus filhos Miguel e Paula Nery, a mostra lança-nos numa reflexão sobre a salvaguarda de legados artísticos póstumos contemporâneos e sobre o desenvolvimento e adoção de estratégias de preservação dos mesmos. Sem a/o artista, figura central na preservação e continuação do seu corpo de trabalho, a ativação de instalações torna-se complexa, podendo mesmo não ser possível, devido à inexistência de documentação ou de lacunas a nível material, revelando-se evidente a importância da ativação/exibição na preservação deste tipo de obras e da sua identidade, bem como o estabelecimento de estratégias que permitam repensar soluções para futuras iterações. Face a estas questões e aos desafios da preservação e apresentação de obras que requerem uma montagem na ausência da artista, os curadores foram motivados a criar um projeto expositivo e editorial, em exibição no Centro de Arte de Oliva, que conduzisse à elaboração de cadernos de montagem – base para a reinstalação de trabalhos como Ensaios para uma paisagem (1997) e Antecâmara (2002).
Entre desenhos e anotações, reveladores do seu processo criativo, deixamo-nos conduzir no espaço expositivo pelas onze obras de Ana Vieira, reconhecida entre os seus pares, críticos e historiadores de arte como uma das mais importantes e influentes artistas da segunda metade do século XX e início do século XXI em Portugal. Responsável, nos anos 60, pelo combate aos meios tradicionais da arte, ao repensar a escultura e a pintura através de gravuras, objetos, instalações e ambientes, a relação e indefinição de fronteiras entre o interior e o exterior são uma constante no seu corpo de trabalho, conforme testemunham as obras em exibição e perante as quais assumimos uma posição de voyeurs. Tendo por base o conceptualismo, nas várias fases do seu trabalho, Ana Vieira explora materiais, suportes e imagens, criando situações plásticas e visuais que fazem pensar na relação do observador com o objeto e na imagem como método de interrogação sobre a realidade. Construtora de ambientes, lugares e objetos, é através deles que a artista nos convida a percorrer sensorialmente o espaço.
O primeiro momento expositivo apresenta-nos o estudo em papel e respetiva instalação de O desenho da menina a fugir do seu suporte (2014), obra multimédia composta por três projeções de vídeo digital, sem som e em loop, com frames desenhados à mão pela artista, representando a figura de uma menina, em tamanho real, que corre ininterruptamente numa ideia de fuga, associada a um mal-estar social, político e económico vivido em Portugal na época em que foi criada. Projetada da direita para a esquerda, ao longo de três paredes brancas, a complexidade tecnológica da obra demanda a necessidade de um espaço adequado para a expor – desafio que foi cumprido no Centro de Arte de Oliva: por ser branco e com interrupções físicas entre as projeções, criando um efeito visual fantasmagórico das meninas que aparecem e desaparecem de uma parede para a outra, e pelo chão acetinado que reflete as imagens dos vídeos, detalhe que acrescenta valor estético à obra.
Na segunda sala de exposições, o interesse de Ana Viera por questões relacionadas com o papel e a relação da mulher com o ambiente doméstico, ao focar-se a partir da década de 60 na intimidade e na memória que os espaços privados preservam, é-nos apresentada em Santa paz doméstica, Domesticada? (1977). Direcionada para as questões do feminismo e suas expectativas, com ironia, a instalação apresenta um interior doméstico, composto por um cadeirão que, rodeado por diversos objetos do universo feminino, nos revela a ausência de uma mulher. A acompanhar a instalação, um guião descreve a relação erótica da mulher com a limpeza da casa, numa obra que, no seu conjunto, é uma crítica da artista à sua condição de mulher, à sociedade da época e à condição feminina nos anos 70. Partilhando o mesmo espaço, a problematização da ideia de escultura, dos vazios que se tornam volumes e a dualidade interior/exterior, ocultação/desocultação, são-nos reveladas no conjunto de três grandiosos gessos – moldes perfilados de figuras clássicas em caixas de madeira entreabertas – que remetem para reprodutibilidade da obra de arte e sua dessacralização.
Transformando o espetador passivo e contemplativo num observador ativo que interage com a obra, destacamos, na passagem para a sala seguinte, a presença de Vigias I, II, III (2008) – três caixas brancas penduradas na parede, cada uma delas com ranhuras, que nos convidam a integrar a obra, colocando as nossas cabeça nos seus interiores de onde podemos observar e ser observados. Na mesma lógica voyeurística do espetador, destaque para Close-Up (17) e (18) (2004), um conjunto de dois painéis brancos com fotografias fixas nas faces, viradas para a parede, cuja visualização é feita através de um jogo de pequenos espelhos que nos revelam, mediante o ato de espreitar, objetos e espaços associados à casa e vida doméstica.
Na mesma sala, antecedendo como ecos visuais a instalação Le Déjeuner sur L’Herbe 77 (1977), observamos elementos documentais pertencentes ao espólio de Ana Vieira relativos à obra: o catálogo da Alternativa Zero, um desenho/planta explicativo da artista datado de 1976, e uma fotocópia com a descrição da instalação. Convocando a presença de Eduard Manet (1832-1883), Ana Vieira apropria-se da obra seminal do pintor Déjeuner sur l’herbe (1863) – epíteto da arte moderna –, projetando-a sobre uma toalha estendida no chão, onde é performativamente interpretada com a representação de um piquenique. Sobre a projeção da pintura de Manet – que, no século XIX, colocou em questão os cânones admitidos pela Academia –, a artista dispõe objetos tridimensionais do nosso tempo que remetem para um espaço interior: copos, pratos, frutas de plástico, um cesto com pincéis e uma paleta de pintura. À semelhança de quando foi exposta na Alternativa Zero em 1977, também no Cento de Arte de Oliva, a instalação Le Déjeuner sur L’Herbe 77 – pertinente no que respeita à travessia de tempos e espaços – ocupa uma sala isolada, escura e fechada, onde o espaço é vivido e experienciado pelo espetador com o corpo. Experiência sensorial e espacial que reencontramos em Antecâmara (2002), obra de forte dimensão cenográfica, constituída por uma sala branca e vazia, a qual se acede através de um pequeno corredor com uma cortina esvoaçante branca pendurada numa das paredes e iluminada pelo exterior. Para além da cortina branca, único elemento móvel do espaço dominado pela ausência, há, simultaneamente, uma presença sugerida pelo som de passos de uma mulher. Exposta pela última vez em 2011, no CAM da Fundação Calouste Gulbenkian, antes de entrarmos na Antecâmara, destacamos a decisão curatorial em exibir os desenhos e anotações da artista sobre a obra e a sua montagem na Galeria Giefarte, Lisboa, onde foi apresentada pela primeira vez em 2002.
A encerrar a exposição, ocupando a última sala que lhe é dedicada, apresenta-se a instalação Ensaio para uma paisagem, exibida uma única vez em 1997, na sala do Veado do Museu de História Natural e de Ciência, em Lisboa. Acompanhada por uma banda sonora, a obra, de grande complexidade a nível técnico, é composta por mecanismos eletrónicos dentro de sete grandes paralelepípedos, executados com diferentes materiais, ligados por uma tubagem e alinhados no espaço. Criando diferentes efeitos visuais e sonoros, cada uma das estruturas reproduz sensações naturais que originam um contínuo espacial: metal espelhado, madeira, vento, humidade, farol, areias e fumo. Vinte anos após a sua primeira e única apresentação, sem a presença da artista e conhecimentos necessários para voltar a instalá-la, a remontagem de Ensaio para uma paisagem só foi possível devido a um trabalho de pesquisa e esforço coletivo.
Com o objetivo de estudar, documentar e de criar cadernos de montagem sobre o corpo de trabalho de Ana Vieira, a exposição Ana Vieira: Cadernos de montagem revela-se um contributo fundamental para a preservação do legado da artista e suas apresentações futuras, cujos cadernos, de acordo com as curadoras, “servirão museus, investigadores, universidades escolas de arte, artistas e todos os interessados na obra artista, bem como ajudarão a refletir sobre os desafios que este espólio e outros semelhantes apresentam”.
Ana Vieira: Cadernos de montagem está patente no Centro de Arte de Oliva até 9 de março de 2025.