Não Faz Mal de Manon Harrois na Galeria Foco
Depois de participar em residências artísticas nos Açores, com artistas portugueses e estrangeiros, e mais tarde em colaborações com a artista Sara Bichão – com a qual se entrosou num intenso e fluído hibridismo de pinturas, desenhos, performances, esculturas –, a artista francesa[1] Manon Harrois revela-nos, na galeria Foco, um desdobramento de explorações e experimentações entre meios artísticos, decorridas do contacto que teve com a natureza e com os pescadores da praia de Cascais.
Depois das colaborações que Harrois estabeleceu com Bichão, na atual exposição individual, Não Faz Mal, a artista dá continuidade à ideia de partilha a dois, “assente numa rede de trocas criativas, que evoluíram para uma dimensão mais ampla, de natureza social”. Interessa à artista um rol de experiências que estabeleçam “um território de múltiplas interconexões, gestos e suportes”[2].
Ao longo do processo, que durou um ano, um pescador dedicado transportou para a galeria fragmentos de plásticos e redes recolhidas na praia, que tinham servido anteriormente para capturar o polvo na costa.
Um pouco por toda a galeria aglomeram-se, assim, vestígios desses mesmos fragmentos, assemblados pela artista, unidos uns aos outros e transformados em pequenos habitáculos. A riqueza das suas malhas intensifica a natureza das conexões feitas por meio dos pedaços que foram sendo encontrados. Redes plásticas de cor verde, de contornos imprecisos, surgem agrupadas a outras, feitas de látex, que desmaiam sobre a parede ou mesclam contra as primeiras, mais enrijecidas. Manifestam a flacidez da perenidade, a solidez da finitude. É a subtileza do que é efémero e frágil, que se recobre e exterioriza.
Corais delicados, lácteos, estendem-se, suspensos, numa área da galeria. Revelam as suas iridescências, as suas concomitâncias, e demarcam a sua heterogeneidade. Mais uma vez, a efemeridade deixa-se revelar, essência da natureza.
Em lugares inesperados, inusitados, outros pequenos fragmentos de coral emergem. É preciso ver com agudeza. A artista desafia constantemente a nossa percepção.
Uma rocha negra, em forma de vulva, foi transportada para a entrada da galeria. Oferece-nos o espanto. Os estímulos parecem competir entre si para captar a atenção. O certo é que são tão belos que somos tentados a apreendê-los em simultâneo. Concorrem, pululam à nossa frente. Sou tocada pela obra Amanhã há mais, de 2024. Depois por Leme, do mesmo ano. Um diálogo entre elementos compõe as estruturas: plástico, látex, corda e vestígios de cracas parecem ser os materiais mais empregues.
As peças harmonizam-se, e descobrem recantos. Num esfoço site specific, é estabelecido um jogo com o espaço que, de modo acutilante, foi sendo urdido pela artista: “Claro que o espaço não é mera extensão, mas uma relação, uma arquitectura construída na topografia submersa dos afetos. Há uma ambiguidade persistente num espaço assim entendido, no seu mapa mutável e nas inversões dos supostos ‘dentro’ e ‘fora’”, esclarece-nos Maša Tomšič na folha de sala.
Um dentro e um fora que progressivamente se adensam na obra Sopas (2024), compreendidos pela construção de uma maquete, modelo em kit transportável, feito em madeira de contraplacado e balsa, e que bem transcreve o espaço da galeria. No seu interior, surgem vestígios de peixes, que reforçam a transitoriedade da vida. Um excerto de um poema de George Bataille, autor que a artista tanto aprecia, bem poderia ilustrar este aspecto transitório: “O excesso de trevas / é o brilho das estrelas / o frio da tumba é um dado”. Ou, ainda, Nicolas Bourriaud, para melhor evocar a singularização, “numa incorporação de territórios existenciais, pessoais, como ferramentas que ajudam a inventar novas relações com o corpo, com a fantasia, com a passagem do tempo, com os mistérios da vida, e da morte”.
Não Faz Mal de Manon Harrois está patente na Galeria Foco até dia 21 de dezembro.
[1] Sara Bichão & Manon Harrois, Centre d’art contenporain/Passages, 2019
[2] Maša Tomšič na folha de sala da exposição.