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Entrevista a Flávia Vieira, autora da Capa do Mês

Entre o ocidente europeu e a força revolucionária e transformadora do contexto sul-americano brasileiro, Flávia Vieira encontrou o gesto que a melhor identifica: aquele que vê na cerâmica e nos têxteis vetores essenciais de reflexão sobre as hierarquias e o valor associado a distintas formas de expressão artística. Entre cá e lá, estes materiais diluem as fronteiras entre o artesanal e o artístico, buscando reconstituir práticas culturais, por eco das identidades das comunidades à sua origem, proporcionando, assim, um espaço onde essas histórias ressoam na atualidade.

Em entrevista para a Umbigo, a artista desvenda a sua linguagem visual, a qual se conecta com o sujeito através de um discurso histórico não-linear, quebrando fronteiras históricas, culturais e temporais para estabelecer novas articulações e reelaborar memórias e representações coletivas. E onde a mão, por entre o trabalho que lhe compete e a pertença que reclama, é elo entre o individual e o coletivo, o visível e o invisível.

Vives e trabalhas entre Portugal e Brasil. De que forma(s) percecionas a evolução do teu trabalho quando contrapões ambos os contextos?

O meu trânsito entre Portugal e o Brasil permite-me entender que o meu trabalho se desenvolve em diálogo com as especificidades de cada contexto. Em Portugal, o cenário artístico carrega uma herança europeia ainda marcada por uma abordagem institucional eurocêntrica, e o contato com o Brasil instiga-me a explorar uma linguagem visual mais consciente e politizada, e a rever os meus próprios referenciais sociais e ontológicos, em virtude da relação mais visceral com as questões identitárias, sociais e decoloniais que permeia a cultura brasileira. O Brasil é um contexto multicultural marcado por uma história colonial na qual Portugal tem um papel fundamental, o que torna o contexto artístico mais híbrido, e também mais desafiador em termos de representatividade e de posicionamento social e político.

Posicionamento artístico esse que ocorre, sobretudo, através da cerâmica e do têxtil. Tendo eles raízes em muitas e diferentes culturas e geografias, como é que equilibras a preservação das técnicas tradicionais com as expressões artísticas contemporâneas?

Equilibrar a preservação das técnicas originárias com a criação de expressões contemporâneas é um processo delicado e desafiante. Ambas têm uma herança histórica profunda, cuja ancestralidade e o valor cultural devem ser respeitados, por forma a evitar gestos de apropriação e novas “colonizações”. Acho importante partir de uma abordagem de reconhecimento e de pesquisa aprofundada das técnicas tradicionais, procurando compreender o seu contexto histórico, simbólico e político. Penso que a incorporação acontece quando se estabelece um diálogo poético com o meu repertório e existência, ou seja, quando se cria uma espécie de eco entre a matéria e a minha existência. Ao incorporar técnicas ancestrais, encontram-se novas possibilidades de comunicação e de desdobramento visual e simbólico, convidando a refletir sobre a relação do sujeito com o tempo, com a natureza e com o coletivo. São processos que abrem espaço para novos desdobramentos e entendimentos ontológicos, na medida em que implicam a revisão de sistemas e hierarquias culturais e históricas.

Significa isso, portanto, que através deles se desafiam e exploram narrativas históricas e/ou culturais multifacetadas.

Sim, questões de poder, identidade, alteridade, memória e representação coletiva.

E, por entre essas reflexões acerca de estruturas sociais, nada nas tuas escolhas é inocente, nem as cores.

A cor tem assumido um lugar significativo no meu trabalho, representando um campo de atuação onde tais reflexões são abordadas de forma visual e profunda. Em Brasilina (2021), apresentada na KUBIKGallery, o uso do pigmento proveniente da árvore do pau-brasil conduz-nos para a história colonial entre o Brasil e Portugal, mais concretamente para a história de extração e de exploração de recursos naturais que se repercute até hoje. A cor funciona como um resgate simbólico do que foi apropriado e transformado em mercadoria. Também em True Black (2023-2025), projeto iniciado no Centro de Residências Artísticas Matadero em Madrid e que se encontra em desenvolvimento, a cor preta proveniente da árvore do pau-campeche originária da Península de Yucatán no México, remete para o domínio do império espanhol sobre os territórios da América Central e da América do Sul, e a apropriação deste recurso natural e dos saberes de tinturaria a ele associados e desenvolvidos pelos povos originários daquelas regiões. A cor torna-se num elemento vivo e de afirmação de presenças, ao mesmo tempo que desafia a identificar camadas de subordinação e de exploração ambiental que ainda subsistem.

Precisamente! Ambos os trabalhos recorrem a metáforas simples e expressivas que impressionam pela delicadeza crua do significado. São eles formas de expressar a tua necessidade consciente de deslocar a história imperial e de escravatura até ao presente, a fim de descolonizar narrativas de poder?

Esses trabalhos procuram explorar visual e simbolicamente a persistência de estruturas de poder coloniais que, embora oriundas de um passado histórico, continuam a repercutir-se nas relações sociais, económicas, culturais e políticas atuais. Expressam a necessidade de dialogar criticamente com a história, através do uso das cores originárias das duas árvores sul-americanas, as quais carregam uma história de extração e apropriação de recursos naturais que sustentaram uma estrutura imperial escravocrata. Essas tonalidades são ressignificadas como parte de um processo que transforma a cor num símbolo de poder e de hierarquia racial. O deslocamento está na transição de uma cor originalmente associada à terra e à natureza, usada pelos povos originários, para um símbolo que foi apropriado e reconfigurado dentro de um sistema colonial. Assim, buscando uma reconexão com essas memórias e trazendo a oportunidade de reelaborar as narrativas em torno delas, no sentido de construir uma conscientização coletiva em torno delas

Ainda em linha com questões de representação e memória coletiva, percebo que outros trabalhos invocam, de forma bastante assídua, o corpo humano. Como exploras a relação entre o corpo e os materiais usados? E que implicações políticas vês nesta interação, especialmente em relação ao género ou à identidade cultural?

No meu trabalho, o corpo surge como um espaço de simbolismos que dialoga com os materiais utilizados. Essa interação entre o corpo e os materiais revela um campo de tensão e diálogo entre o natural e o cultural. Quando trabalho com cerâmica ou utilizo fibras têxteis que dialogam com modos de fazer, estou a criar uma ponte entre a fisicalidade do corpo e o caráter simbólico dos materiais. Esses materiais tornam-se extensões do corpo e refletem identidades e memórias coletivas que este carrega. Essa relação entre o corpo e os materiais é uma maneira de desafiar a noção histórica sobre a identidade cultural, sendo o cabelo um exemplo disso mesmo. O cabelo é, escultoricamente, uma matéria viva e difícil de representar, e essa dificuldade vai ao encontro dessas categorias cristalizadas da identidade. Para além disso, poderá pensar-se que a relação corpo-matéria poderá trazer uma implicação direta com o género, já que a cerâmica e o têxtil são historicamente associados ao trabalho doméstico. O corpo incorpora a matéria como significante, levando-a a criar novos entendimentos e espaços de discussão e reflexão, e a desenvolver novas presenças em potência.

Em Pandã (2019), várias peças tecidas e replicadas confrontam-se e, simultaneamente, dissolvem-se na ilusão visual que estimulam, fundindo-se hierarquias entre materiais, modos de fazer e referências, do erudito ao popular. É possível que desta fusão-aglomeração se diluam as forças e o valor artístico individual, em detrimento do estatuto decorativo?

Esse projeto circunstancia o início do uso de metodologias mais tradicionais, como a cerâmica e o têxtil e, nesse sentido, apresenta de um modo mais evidente a problematização do estatuto ou valor do objeto, bem como da relação entre as manifestações “eruditas” e “populares”. A coabitação de têxteis e cerâmicas com a mesma solução formal cria um espaço de diálogo e confronto visual onde as hierarquias são intencionalmente dissolvidas, desafiando as separações entre os modos de fazer, ou entre o que é considerado “erudito” e “popular”. Tal fusão reivindica o decorativo como parte do discurso estético e cultural, sugerindo que a aglomeração de referências fortalece a ideia de que o valor artístico não está em uma hierarquia rígida, mas na capacidade das obras se informarem mutuamente.

Como imaginas a evolução da tua prática no contexto da arte contemporânea? Existem movimentos/mudanças artísticas que se alinham com a tua visão para o futuro?

Os movimentos de atenção sobre culturas e práticas locais são especialmente alinhados com a minha visão. Na arte contemporânea, temos assistido a um interesse crescente pela integração de práticas originárias e recursos naturais, o que se conecta profundamente com a minha pesquisa sobre materiais e memória cultural. Vejo nesse movimento um ponto de continuidade para a minha prática, na qual aprofundo a pesquisa de questões ligadas à diáspora botânica, do uso simbólico das cores e dos materiais com significado histórico. Por outro lado, os movimentos voltados para a criação de espaços de representação mais diversos e inclusivos é um aspeto que compreendo importante para o futuro e que se alinha com o meu interesse em ampliar o alcance das narrativas que abordo, para que incluam mais vozes, experiências e realidades. Assim, a evolução que imagino para a minha prática está em sintonia com essa mudança para uma produção que propõe rever e reelaborar as estruturas tradicionais, num posicionamento entre o local e o global.

Mestre em Estudos Curatoriais pela Universidade de Coimbra, e com formação em Fotografia pelo Instituto Português de Fotografia do Porto, e em Planeamento e Gestão Cultural, Mafalda desenvolve o seu trabalho nas áreas de produção, comunicação e ativação, no âmbito dos Festivais de Fotografia e Artes Visuais - Encontros da Imagem, em Braga (Portugal) e Fotofestiwal, em Lodz (Polónia). Colaborou ainda com o Porto/Post/Doc: Film & Media Festival e o Curtas Vila do Conde - Festival Internacional de Cinema. Em 2020 foi uma das responsáveis pelo projeto curatorial da exposição “AEIOU: Os Espacialistas em Pro(ex)cesso”, desenvolvido no Colégio das Artes, da Universidade de Coimbra. Enquanto fotógrafa, esteve envolvida em projetos laboratoriais de fotografia analógica e programas educativos para o Silverlab (Porto) e a Passos Audiovisuais Associação Cultural (Braga), ao mesmo tempo que se dedica à fotografia num formato profissional ou de, forma espontânea, a projetos pessoais.

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