Nesta ilha, nesta escola, de Francisco Janes, na Escola da Vila do Porto Santo, PORTA33
Desde 2019 que Francisco Janes, artista e realizador independente português, tem vindo a mapear sonora e visualmente a ilha do Porto Santo, acompanhando o trabalho da PORTA33 a partir do momento em que ocupou a Escola da Vila. Nas suas palavras, um “processo de transformação de um lugar no território da ilha através da arquitectura habitada”. Ao longo deste processo, tem vindo a gerar “um arquivo vivo de significantes”. Nesta ilha, nesta escola é a primeira de duas exposições que resultam deste trabalho continuado, reunindo registos de uma “câmara e gravador que se abrem à paisagem” e de “um envolvimento em decalque com o que se passa no processo de renascimento da escola”. Janes acompanhou o processo de restituição das características arquitectónicas originais do importante edifício da Escola da Vila, da autoria do arquitecto Raúl Chorão Ramalho, as residências de artistas como Nicolás Paris, Carolina Vieira e Daniel Silvestre, assim como eventos e oficinas desenvolvidos pela PORTA33 ao longo destes cinco anos. Efectuou ainda longas caminhadas solitárias pela ilha com o intuito de absorver aquele território na sua plenitude e profundidade. As suas diversas passagens pelo Porto Santo em diferentes momentos integram o programa Eira, com curadoria de Nuno Faria. É já comum no trabalho do artista o desenvolvimento de um projecto a partir de um lugar específico.
Escutam-se as pedras a embater umas nas outras quando puxadas pelas ondas do mar, o vento que sopra do sopé ao topo dos picos, folhas que se agitam com o vento, o cantar dos grilos à noite, os pássaros que sobrevoam a ilha. Vêem-se corpos delineados pelas próprias mãos, crianças que brincam nos espaços da Escola, plantas aéreas que balançam ao sabor do vento, mãos que desenham e pintam, cobertas de sangue de drago, traços que surgem no papel, montanhas que no ar se elevam.
Duas projecções e diversos excertos sonoros ocupam o espaço da antiga cantina da Escola da Vila. A instalação de vídeo e som de Francisco Janes é feita de experiências multissensoriais que desenham a ilha. Segundo o artista, “este espaço de evocação é uma sombra do que é fugaz mas perdura”. Uma experiência imersiva. Um mergulho na paisagem e vivências do Porto Santo a partir do edifício da escola. Uma outra intervenção une dois dos edifícios através de linhas de pesca. A passagem imprevisível do vento por estas linhas é convertida em vibrações e transmitida em directo a partir de uma das salas de aula, invadindo o espaço do pátio que lhe é contíguo. Misteriosamente, escutamos este som amplificado, não o identificando imediatamente, é apenas um ruído de união. Os registos de Janes debruçam-se sobre o domínio do sensível, sugerindo o tempo demorado que ocupa aquele território. Um trabalho de cinema experimental sensorial. “Um cinema do rosto enquanto paisagem, da paisagem enquanto rosto” (Nuno Faria, 2022). Por momentos, um desligamento do que nos rodeia e uma paragem do tempo, necessária e urgente, uma imersão no que escutamos e vemos.
O trabalho de Francisco Janes, fortemente marcado pela ideia de experiência, parte de uma atenção, um respeito e até uma paixão, pelo documento. O documento enquanto vestígio, ou enquanto sugestão de alguma coisa. Cada gravação sua é um indício, uma vez que deixa algo em aberto e sugere relações com questões por vezes invisíveis. “Pistas no encalce de um propósito”, como Janes lhes chamou. Vestígios recolhidos, todo o material é perscrutado no sentido de encontrar essas ligações, de índole poética, e tecer um filme, uma peça sonora, ou a combinação dos dois, constituindo uma “antropologia dos sentidos”. Interessa a Janes o modo como as relações entre os vários indícios chegam aos sentidos, de modo a que seja proporcionada uma experiência ao espectador.
A inauguração de Nesta ilha, nesta escola aconteceu durante a Festa da Escola da Vila, evento que se iniciou com um concerto de abertura e que contemplou actuações da Banda e Grupo de Folclore tradicionais do Porto Santo, uma performance conduzida por um grupo de estudantes e a apresentação da revista Umbigo #90, com uma edição especial subordinada à Escola do Porto Santo, PORTA33-Porto Santo-The School Effect, para a qual Francisco Janes concebeu um ensaio visual. O segundo momento desta exposição terá lugar em Março de 2025, na PORTA33 no Funchal. Uma versão expandida do trabalho desenvolvido pelo artista, que remonta a 2019, ano de início deste projecto, passando pela documentação do espaço da Escola da Vila – hoje lugar de residências artísticas e das actividades desenvolvidas pela PORTA33 -, duas peças sonoras e duas projecções principais dedicadas a dois aspectos centrais assentes numa ideia de colectivo, “uma pluralidade de experiências individuais” e “grupos de aprendizagem e trabalho colectivo”.
Como complemento, a Escola do Cinema Natural proposta pelo artista, responde ao desafio lançado pela PORTA33 para o desenvolvimento de um projecto pedagógico. Centra-se na ideia de tornar acessível às pessoas uma metodologia simples de criação de peças de imagem e som a partir das coisas mais elementares. Um projeto de transmissão de conhecimento e criação documental para o território, a partir da experiência de produção de um filme, que conta já com algumas oficinas realizadas.
Francisco Janes mudou-se para a Lituânia há cerca de dez anos, vivendo com a sua família num lugar isolado, na floresta junto ao maior lago do país, o Asvėja. É neste isolamento que trabalha, observando a natureza a mudar de dia para dia, a nascer, a morrer, a renascer. Um processo transformador que contraria a ideia comum de que nestes lugares nada acontece. Aqui criou, juntamente com Phill Niblock, a Casa Amarela, “um arquivo em crescimento e um lugar de arte e de aprendizagem com o outro e com a floresta”. Neste lugar entre a água e a terra, com uma paisagem glaciar, encontra-se um espaço de residências artísticas e um arquivo em crescimento iniciado com o resultado da residência de Niblock, seis meses antes do seu falecimento, em parceria com Francisco Janes. A passagem continuada de Janes pela ilha do Porto Santo é, por tudo isto, bastante acertada. “Eu costumo dizer que nem todas as ilhas são rodeadas por mar, quando falo acerca do lugar para onde me mudei”.
Nesta ilha, nesta escola, de Francisco Janes, está patente na Escola da Vila do Porto Santo até 30 de Março de 2025.
Nota: a autora não escreve sob o abrigo do AO90.