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O bosque de sonhos de Irving Penn — sobre Centennial

Virada para o porto de A Corunha, na Fundación MOP, organizada pelo Metropolitan Museum of Art, a exposição Centennial, de Irving Penn, comissariada por Maria Morris Hambourg e Jeff L. Rosenheim, expõe cerca de 175 fotografias de um dos mais importantes fotógrafos do século XX. Adentrando no espaço da exposição, rodeados por paredes pintadas em tons baços, matizados entre o castanho, o grená e o caqui, a simular um desgaste corrosivo, análogo ao fundo sobre o qual Penn fotografava — e que está exposto —, passamos a caminhar sobre um terreno que não sabemos se pertence ao sonho se à realidade. Isto é, não é claro se a intenção e o resultado criativos são subsidiários de um olhar documental sobre o real, se de um olhar expressionista a partir do real. As figuras apresentadas não são caricaturais, nem se encontram alheadas naquele estado vagamente sonâmbulo com que as gentes desprevenidas nos seus quotidianos surgem na ilusão cénica que a fotografia brevemente lhes oferece. Não são circenses, não se tratando, no entanto, de meros retratos de apresentação. É certo que os melhores sonhos, os que mais impressionam, aqueles que se transformam em obstinações mais ou menos analíticas a dominar a vigília, parecem reter a influência física dos objectos entre si, conduzindo o nosso olhar para os elos e os rompimentos da matéria: como se o mundo nos fosse apresentado como uma grande sinfonia cujo maestro está ou não presente, sendo ou não identificável. A música, essa, como o sonho, foi composta há já demasiado tempo para lhe extrairmos uma pauta única, primeva. O que nos é dado experienciar são os seus diversos modos de orquestração e, assim, as formas de nos implicarmos numa visão enleante sobre as coisas.

A curadoria de Centennial procurou representar as diferentes fases pelas quais o trabalho de Penn passou, sem que as mesmas se apresentem de forma compartimentada — o espaço da exposição é amplo, comunicante nas suas divisões —, ou não fosse essa uma forma precisa de fidelidade ao artista, cujos interesses foram explorados sem estarem subordinados a uma agenda profissional unívoca que os separasse entre si: dos retratos para a revista de moda Vogue à fotografia de comunidades indígenas da Índia a Marrocos, passando pela Guiné, o trabalho de Penn revela-nos inequivocamente a vertigem – isto é, a atracção irresistível pelo abismo – que provoca o desfile de singularidades que as figuras encerram. De certo modo, todos os modelos fotografados são como rostos, planos de apresentação a admirar, na duração que o magnetismo exercido exija. Assim, se são rostos de apresentação – mesmo que o rosto, ele mesmo, esteja obliterado -, são-nos na permeabilidade que apresentam para o seu prolongamento, sua transgressão, sua reelaboração fictícia premente e essencial.

O respeito do fotógrafo pelas pessoas que se dispõe a fotografar é o mesmo, tratando-se de Lisa Fonssagrives-Penn, top model com quem viria a casar-se, ou de duas crianças mexicanas, na cidade de Cusco. O gesto de colocar a câmara à altura dos modelos fotografados só vem atestar que o movimento de flectir os joelhos, vergar as costas, espreitar pelo buraco mais fundo e esperar o espanto é, se o objectivo for o de alongar o corpo e a mente guiados pelo outro, o mais são e justo acto de generosidade e, dir-se-á mesmo, de verticalidade. Impressiona o modo como a figura masculina, de um homem mexicano, surge virada de costas para a câmara, detendo uma expressão não menos forte e singular do que outra figura que, na mesma posição, tem o rosto descoberto a encarar a câmara. Não é imediatamente claro, em certas fotografias em que o modelo usa chapéu, perceber se se encontra de rosto coberto pela sombra, estando o queixo colado ao peito, e o chapéu encimando a cara, se a figura se encontra, na verdade, de costas. Por duas vezes, aconteceu precisar de me aproximar da fotografia para perceber se sonhava ou não um rosto. Nuns casos, o rosto estava à mostra, noutros não. Tudo isto – e eis o que importa reter desta pequena crónica – para se chegar à conclusão que os rostos são sempre sonhados. São um sonho nosso, arrastado pela sombra mais ou menos longa, isto é, mais ou menos generosa do recorte que nos dá desse outro sonho que é o nosso próprio rosto, que é, por sua vez, o modo — mais ou menos generoso — como nos tornamos claros ao olhar do outro.

Se os retratos de figuras célebres como Picasso, Joan Didion, Ingmar Bergman, Jean Cocteau, Truman Capote ou Audrey Hepburn inscrevem marcas de estilo particulares aos retratados, também é certo que este mesmo elenco se junta a inúmeros anónimos: as mulheres cobertas por véus negros em Marrocos, os máscaras-vivas da Guiné, os representantes de pequenos ofícios. Mas o movimento não é este. É antes o seu oposto: não são as celebridades que se juntam aos anónimos, são os anónimos que dominam o jogo de peças de Irving Penn, que monta assim o seu teatro, o seu bosque de fadas, o seu recreio de duendes. Ninguém terá captado tão maravilhosamente as texturas voluptuosas da marca de alta costura Balenciaga, postas em corpos esguios de mulheres que parecem existir tão-só e fulgurantemente — como o rastro de uma estrela cadente — para honrar o engenho costurado de uma peça. Da construção de um álbum de personalidades influentes, do mundo da moda ao da literatura, passando pelo do teatro e da arquitectura, Irving Penn detém o seu olhar, e partilha-o connosco, em beatas de cigarro, apresentadas a grande escala e na vertical, promovendo uma equiparação desses resíduos a figuras humanas, numa permanente lembrança da dimensão satírica da condição humana, cuja raiz será a de ser resto, fantasma concreto, a relíquia perdida de temporalidades acumuladas, indistintas, confusas. E ao lado da sala cheia de grandes imagens de beatas, segue-se uma parede com flores fotografadas no exacto momento em que começam a murchar.

Trata-se de uma exposição-testemunho exímio da arte fotográfica e uma lição de vida, segundo a qual a ficção dos outros é a prova mais fiel de atenção sobre o que estranhamos e o modo mais corajoso de olhar para dentro, servindo-nos de um mundo que devemos merecer, na mesma medida em que ele nos convida a estar presente, sem exigir a distinção entre dentros e foras.

Centennial de Irving Penn está patente no Centro MOP, na Corunha, até 1 de maio de 2025.

 

A Umbigo viajou à Corunha a convite da Fundación MOP.

Mestre em Estudos Portugueses, com a tese “Modos de Cindir para Continuar: uma leitura de A Noite e o Riso e Estação, de Nuno Bragança”, pela Universidade Nova de Lisboa, onde se encontra a tirar o doutoramento, preparando uma tese sobre Agustina Bessa-Luís e Manoel de Oliveira, a partir do conceito de melancolia. Bolseira FCT, participou em antologias, tendo publicações, de poesia e ensaio, em revistas nacionais e internacionais. Publicou dois livros de poesia: Hidrogénio (2020) e Rasura (2021). É co-editora da revista Lote. Faz crítica literária no jornal Observador.

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