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Sinestesias na Appleton: interioridade (transcendental), reciprocidade (musical) e amizade (informal)

Entre meados e finais de Novembro, a Appleton avançou três propostas curatoriais, para os seus dois espaços, o Square e a Box. Apesar de profundamente heterogéneos, os projectos expostos encontram-se num eixo estrutural — a sinestesia. Poder-me-iam vocês dizer que essa é uma característica intrínseca a toda a arte; não obstante, as sinestesias aqui evocadas afastam-se do sentido central habitual, a visão — abrindo espaço a diferentes associações, novas inter-relações sensoriais e estruturas de senti-pensar alternativas.

Há uma certa condição sinestética nas obras que Manuel Caldeira apresenta em Miragem, no Square da Appleton. Certo é que a representação simbólica, nas artes plásticas, sempre esteve enraizada numa tradição assente numa esfera predominantemente visual. Contudo, se a plasticidade evidencia a possibilidade de manipulação material, então o toque — o tacto — deveria ser o sentido (sensorial) preferencial à interpretação e recepção da criação tridimensional. Apesar disso, bem sabemos da centralidade da visão nas nossas inter-relações sensoriais; bem como na criação artística — onde a representação sobrevive por meio dessas reciprocidades sinestéticas. A antropóloga Sarah Pink tem-nos vindo a alertar sobre esta situação em, entre outros, Sensory Imaginations[1], onde discorre acerca da importância do afastamento da imaginação de uma esfera predominantemente visual para uma sensorial, pois considera a imaginação como uma prática quotidiana situada, realizada em relação à multissensorialidade das nossas relações sociais e materiais reais. Assim sendo, a imaginação é um processo constituído por um conjunto de relações que articulam entre informação e perceção na interpretação do espaço físico e psíquico. Saliente-se a estreita co-relação entre a imaginação e o espaço de atuação (situ-ação) — nestes termos, a visão torna-se visualização de uma condição ausente, uma construção mental e espacial entre o desejo e a realidade, uma Miragem. Importa, neste âmbito, mencionar que as obras de Manuel Caldeira para esta exposição foram trabalhadas tendo em conta o espaço que havia, na galeria.

Retornando à representação simbólica, a miragem apesar de se caracterizar como um fenómeno (de ilusão) óptico, constrói-se através de uma falência das correspondências sensoriais que, por sua vez, se manifestam na visão — aquilo que Ana Anacleto se refere no texto de sala, poeticamente, como magia, alucinação ou fuga transcendental à contingência do real. A representação desta visualização, ou projecção visual, torna-se num processo interior de articulação háptica entre o dispositivo visual e o material. A interpretação, por sua vez, torna-se uma travessia, num processo contingente à nossa interioridade atendendo a um reconhecimento sinestético por meio da visão.

Dito isto, resta mencionar as associações sensoriais — a dita sinestesia — provocadas através da visualização das obras de Manuel Caldeira. Partindo do principio, Infinitului I, um longo, dourado e delgado fio de latão, achatado nas zonas que muda de “direção” — suspenso no ar move-se sobre si mesmo consoante as aragens provocadas pelos movimentos dos corpos no espaço. Esse movimento é silencioso mas ouve-se (fantasiosamente) enquanto os nosso olhos percorrem verticalmente a cinesia “estática” da peça, num timbre aguçado e afiado que oscila e baloiça a frequência linear. Por outro lado, mas no mesmo assunto, Canoa Quebrada e Eclipse abrem dois rasgos liminares dentro do espaço da galeria — como portais transcendentais entre o cubo branco e interioridade abismal do eu(s). Os rasgos surgem sob línguas de areia (grés) que abrem um poço com uma transparência (vidro) opaca implicando o salto de fé do mergulho na interioridade individual. Estas obras, por seu turno, produzem uma sensação tátil, a visibilidade dos grãos do grés provoca um toque sem (requerer) proximidade — os olhos palpam as texturas das peças num prelúdio à travessia que começa na fuga da galeria. Em Peixe Pássaro, sinto (em termos de sentimento e sensibilidade) o vento, que esculpiu a peça em grés, como se de uma duna desértica se tratasse. Por último, a peça central, Miragem, figura um silêncio transcendental que se materializa atendendo ao ritmo vital — o material vai ganhando terreno e dimensão (ainda que apenas bi) ao longo da sua elevação. Também ela suspensa, Miragem vai ampliando e consubstanciando a sua estrutura à medida que se alonga em altura. A sua forma aparenta a refração curva dos raios de luz, bem como das poças de água ou ar onde se refletem as miragens — esculpindo o próprio fenómeno que provoca a imaginação, numa meta-significação, imaginando o processo de imaginação (miragem e alucinação).

 

Todos estes elementos (sensíveis e materiais) que não figuram no espaço da galeria via material, mas por via imaginal (fenómeno que ocorre entre o imaginário coletivo e a imaginação individual) — funcionam como um portal multi-dimensional preferenciando a associação sensorial e material (ainda que por meio visual) à significação formal. Apesar desta ser uma interpretação sensível individual, importa mencionar que há um sensorium cultural, um senso comum que rege a maioria das nossas relações sensoriais. Isto é, enquanto imaginei estas associações (do grés, à areia, ao toque, por exemplo), pensei-as de forma individual, julgava eu — mas vim a descobrir, após ouvir o episódio do Appleton Podcast[2] em que Vera conversa com Manuel Caldeira, que o artista, de facto, pretendia a analogia entre o grés e a areia, visto que todas as peças da exposição tiveram origem numa viagem que o artista fez ao Egipto. Por outras palavras, as linhas materiais problematizadas e desenhadas por Caldeira recortam o espaço da galeria de modo a criar pontos de fuga transcendentais, não de forma individual, mas plural — comunicando através da “magia” da sinestesia, do sensorium cultural, da ecologia da miragem e da sinceridade da alucinação —, viabilizando a partilha do coração que sente de forma individual, mas também pulsa de forma material e plural a percepção e a representação (do sentimento e da sensação).

A Box, por sua vez, entre dia 19 e dia 28 do passado mês de Novembro, apresentou outra sinestesia que se distancia (desta vez por completo) da condição da visão — uma instalação onde se performa gravações da guitarra de Loren Connors, através da visão de Dean Roberts e da difusão (emissão e mistura) de David Maranha e Manuel Mota. A difusão performativa ficou a cargo da dupla portuguesa porque, infelizmente, Dean Roberts faleceu em Agosto deste ano, em Lisboa, enquanto trabalhava esta proposta com o par — que lhe dedica esta apresentação “como forma de celebrar a sua vida e o seu incrível trabalho”. A “performance” proposta irrompe ainda no piso térreo, “um” som que emerge da garagem chama por nós. Ao descer as escadas, o som desdobra-se enquanto a visão definha, ao ser encoberta por uma escuridão que dilata a cada degrau. Chegados, o nosso corpo movimenta-se nesse espaço recorrendo à mediação sonora, em vez da tradicional negociação espacial por meio da matéria construída. A percepção espacial torna-se sonora — é aqui que ocorre (de novo) a sinestesia, na criação de uma ‘paisagem sonora’, construção pela qual Dean Roberts era conhecido, e a última que concebeu — apesar do auxílio de linhas de fuga (fluorescentes) que marcam o intervalo espacial entre os quatro amplificadores de guitarra a emitirem misturas da música experimental de Loren Connors. A paisagem que se constrói emerge de rutmos — concepção pré-platónica que se opõe à ideia exclusiva de ritmo como repetição e métrica —, particularidade do género musical Glitch no qual Roberts foi figura pioneira. Um género que se compõe de “falhas” electrónicas, não do gesto humano que já sabemos ser constituído pela errância, mas da máquina artificial na qual erroneamente confiamos a eficiência e competência plena. Percorrer o espaço torna-se, também, num processo de confiabilidade e de articulação com a falha, inevitável, do “outro” — humano, ou mais-que-humano (visto que há uma meta-agência na máquina artificial, criação humana). Essencialmente, este gesto simbiótico afirma a centralidade da experiência, da improvisação e da imaginação como formas de conhecimento sob si mesmas.

A errância também foi parte integral da performance IRRAR, que erra a própria palavra — (errar) um espectáculo dos UMCOLETIVO, composto por Beniko Tanaka, Janice Iandritsky, Zetho Cunha Gonçalves, Enano e Cátia Terrinca. Num domingo, dia 24 de Novembro, a Box suspendeu o projeto de Dean Roberts para receber a performance pensada para crianças e famílias. Na verdade, o título do espectáculo e o modus operandi do colectivo estão intrinsecamente alicerçados sobre o trabalho de Salette Tavares (1922-1994), poeta, educadora, artista plástica e criança perpétua. Irrar (1979), de Tavares, texto-objeto de cariz experimental abre caminho a uma série de práticas exploradas pelo colectivo contemporâneo, que toma como referência a sua epistemologia. No livro, como na performance dos UMCOLETIVO, o leitor/espectador é convidado a participar, irrar e brincar entre a palavra escrita e falada. Tavares, poeta-narradora, acreditava que a oralidade era uma das primeiras instâncias onde se considera a pluralidade da mesmidade, isto é, a possibilidade de escapar da uniformidade e de pensar a ambiguidade e criatividade da sonoridade sob a similaridade. Na performance, o espaço e o corpo também são ferramentas centrais à indagação da errância — enquanto vozes experimentavam sonoridades e sotaques; movimentos e colagens estilhaçavam palavras; e espelhos fragmentavam corpos. A sinestesia construída neste poema-gráfico é menos direta e mais complexa e está assente no resgate da complexidade fenomenológica e cultural da ideia do falhanço, encorporando-o[3] e provocando-o. Mostra repetidamente como a amizade, a errância e a arte da infância se pode enformar como uma ecologia de saberes e formas de resistência à produtividade e ao aborrecimento da condição moderna.

Miragem, de Manuel Caldeira está patente na Galeria Appleton até dia 7 de Dezembro de 2024.

 

Nota: A autora não escreve ao abrigo do AO90.

[1] Cf. Pink, S. (2009). Doing Sensory Ethnography. SAGE Publications Ltd.
[2] Episódio 151, “A pintura tocada pela escultura” — Conversa com Manuel Caldeira.
[3] Sigo a tradução de Eduardo Viveiros de Castro do verbo inglês “to embody”. Segundo o autor, nem ‘encarnar’ nem ‘incorporar’ são neologismos realmente adequados. In: Viveiros de Castro, E. (2002). A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.

Benedita Salema Roby (n. 1997). Investigadora e Escritora. Doutoranda em Estudos Artísticos: Arte e Mediações, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. Mestre em Estética e Estudos Artísticos e Licenciada em História da Arte, pela mesma instituição. Neste momento encontra-se a realizar uma investigação acerca da correlação entre o graffiti (escrita criativa transgressiva) e a construção da esfera contra-pública e proletária, na cidade de Lisboa. Tem colaborado em projetos independentes com fotógrafos e writers, como é o caso do recente foto-livro da artista Ana Moraes aka. Unemployed Artist, Lisboa e Reação: Pixação não É Tag.

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