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Pulso de Seda, de Ana Manso e Rudi Brito, no Buraco

Pulso de Seda, título da exposição agora patente no Buraco, relembra-me, pela razão óbvia, a complexa teia histórica e cultural da Rota da Seda, um vasto entrelaçar de percursos comerciais e simbólicos que ligaram Oriente e Ocidente. Este eco ressoa particularmente para quem, como eu, mergulhou, durante vários anos, no complexo mundo da cerâmica oriental, tendo trabalhado como avaliadora e catalogadora de porcelanas, com especial foco nas peças chinesas. A imagem que promove a exposição — o fundo de uma taça Mandarim — reaviva também memórias de uma estética que encapsula séculos de tradição artesanal, onde cada pincelada carrega uma linguagem própria, inscrita na superfície vidrada. Avaliar uma peça de porcelana (como qualquer outra, de resto) é, antes de tudo, um exercício de leitura profunda. Cada vestígio da sua antiguidade — as marcas do seu percurso, o peso, os gastos, cabelos, patine, tonalidade da cor — é um fragmento de uma narrativa maior, uma história que a peça conta a quem se pré-dispõe a ouvir. Taças, jarras, pinturas são testemunhos materiais de tempos, geografias e culturas; produções que, por si só, condensam capítulos da história da arte e do mundo.

De forma análoga, as práticas artísticas de Rudi Brito e Ana Manso operam como narrativas visuais distintas. Como sublinhado por Isabel Carvalho na folha de sala, esses dois universos não procuram uma aproximação evidente, mas coexistem em tensão produtiva, permitindo diálogo — “apresentam pinturas, que se justapõem, lado a lado, numa diferença desafiante e que provocam no observador um esforço dinâmico de conciliar diferenças”. As marcas deixadas por cada artista — vestígios de gestos, camadas e intuições — transportam-nos para territórios singulares que, ainda assim, se encontram e complementam no espaço expositivo, como duas peças de porcelana de reinados distintos que, ao serem postas lado a lado, sugerem novas leituras e conexões inesperadas. Ana Manso, em conversa sobre a exposição, diz-nos que houve bastante tempo para que esta se materializasse. Vários encontros e conversas, tempo de aprendizagem sobre cada prática artística e os seus limites, foram construindo um lugar colaborativo, de complementaridade, mas, também, com o carácter individual da prática de cada um bem definido.

O mural que acolhe os visitantes na entrada da galeria, uma obra colaborativa dos artistas que surge no final do processo da montagem, uma peça-meio-sonho[1], pelos elementos apresentados em tons de azul e amarelo, reforçam a referência ao Oriente. O título da exposição, a imagem do fundo da taça, e agora, aqui, uma espécie de chapéus-sombrinhas estilizados e duas jarras de diferentes formatos, aparecem como fragmentos deslocados, roubados a um fundo de um prato de um outro tempo, mas reconectados no presente. Uma ponte, ao mesmo tempo familiar (para mim) e disruptiva, que reclama o espaço habitado por uma narrativa de camadas de histórias não contadas, mas insinuadas, como nas obras que se seguem na sala de baixo — sim, podemos começamos no piso inferior porque Pulso de Seda não tem uma obra ponto de partida.

A prática artística de Rudi reflecte uma óbvia exploração fragmentária, mas também de sonho, enquanto processo e linguagem visual. As suas obras desconstrõem o espaço pictórico convencional, rompendo com as hierarquias de composição e introduzindo uma abordagem intuitiva e fluida. As obras são sempre territórios de múltiplas camadas e profundidades com uma fragmentação que não é aleatória, mas sim orientada por uma lógica interna de revelação: desvelar apenas o que deve ser desvendado, sem arbitrariedade visível, sem impor uma ordem rígida. A cor, frequentemente em tons pastel, que se mantém vibrante e líquida, amplia a dimensão sensorial da obra, conferindo-lhe carácter emocional ao mesmo tempo que reforça a plasticidade dos seus motivos. Os elementos florais, que sempre interessaram a Rudi, apresentam-se aqui como elemento central “quase excessivo, como um licor, que é tão doce que se torna quase enjoativo”[2]. O artista esclarece-nos que, nesta mesma sala, encontram-se duas obras que são prova de processos artísticos distintos, ou que nascem de diferentes processos de finalização: “há uma dualidade. Em Dreams of a Dead Friend (2024) houve uma clara vontade em finalizar, uma urgência, o que me levou a solucionar de forma abrupta. Não fiquei contente e resolvi novamente… sente-se a ruptura, essa luta. Por outro lado, em Greed of Gardens (2024), sente-se o processo de outra forma, houve frieza, clareza, tive vontade de parar e parei. Gosto de como comunicam”. São trabalhos feitos em papel, preparados com esmalte, e, por isso, impermeabilizados, que permitem ao artista retirar, subtrair. Utiliza pincéis, panos, palha de aço e outras ferramentas que lhe permitem esses gestos de escavação.

Na sala, destacam-se também obras que interrompem a linearidade do espaço, projectando-se para além das paredes, concebidas especialmente para esta exposição. Desventramento/Bota (2024) exemplifica essa incursão no tridimensional, explorando a poética visual de um objecto comum — uma bota com atacadores — que transcende a sua função utilitária para evocar algo visceral. A bota, que aparenta estar esventrada, sugere a ideia de entranhas expostas e convida à reconsideração da percepção de objectos enquanto portadores de significados, por vezes, perturbadores. A dimensão fragmentária e viva que caracteriza a produção artística de Rudi manifesta-se, em Pulso de Seda, na forma como este utiliza filtros, camadas e refracções ópticas para criar imagens que se multiplicam e ecoam entre si. Estas obras, muitas vezes oriundas do imaginário, criam padrões e formas que oscilam entre o reconhecível e o abstracto. Motivos transitórios, pássaros, jarras, funcionam como catalisadores iniciais, mas rapidamente se dissolvem numa fluidez pictórica que desafia as fronteiras entre objecto e fundo. O resultado é um conjunto de pinturas que vibram entre estados anímicos, onde recortes, fragmentos e superfícies coexistem como estruturas subterrâneas trazidas à luz. As formas desvendam as camadas internas do processo artístico, expondo os alicerces onde o impulso criativo se enraíza e toma corpo. Estes elementos constitutivos da sua poética visual dialogam com a cor, forma e movimento explorados por Ana Manso.

Nesta exposição, assistimos a uma extensão da contínua investigação e prática da artista, da vontade de que as pinturas vivam para além da tela, que a atravessem e se comportem como corpo independente. Ana Manso revela um profundo comprometimento com a investigação da materialidade pictórica e a transformação do plano bidimensional num espaço de experiências visuais e sensoriais. As suas obras são o resultado de um processo intuitivo que alterna entre a construção e a desconstrução, onde camadas de tinta são sobrepostas para criar composições que oscilam entre o evidente e o oculto. Esse movimento entre o visível e o velado não sugere apenas a passagem do tempo, mas cria, também, uma qualidade vibracional que confere às suas pinturas uma energia pulsante, quase tangível. A aplicação cuidadosa de camadas transparentes, associada a gestos espontâneos e deliberados, resulta em superfícies que parecem respirar, pulsar e se transformar diante do espectador, reflectindo uma dinâmica contínua num espaço de encontro entre o material e o imaterial, o estático e o dinâmico (janela de bambu, 2024 e pérola pelo rio, 2024). As composições etéreas que cria nas suas obras emergem das camadas pictóricas como proposta de uma realidade em constante metamorfose, onde “sobrepõe camadas transparentes, escolhendo como matriz a pincelada, em simultâneo, de uma ou várias trinchas, provocando o efeito de uma desfocagem transfigurativa, proposição de uma realidade fugidia”[3]. As obras que apresenta em Pulso de Seda carregam em si, também, à semelhança dos trabalhos de Rudi, marcas do processo, revelando uma narrativa intrínseca de gestos repetitivos e ciclos criativos, que dão forma a uma linguagem visual distinta. Essa linguagem captura não só a energia latente já mencionada, mas, também, explora os limites da pintura como um campo expansivo de possibilidades, onde cor, forma e gesto questionam a própria essência do fazer artístico.

Sobre a sala no andar de cima, Ana Manso esclarece-nos que esta “foi propícia ao acidente… deu espaço para que este acontecesse. Foi aqui que colocamos coisas que surgiram recentemente, que fogem ao modelo clássico de trabalho de cada um, que saem da zona de conforto”. Obras que ainda não eram obras, que ainda estão a ser processadas, foram, aqui, materializadas (ex. Sem título, 2024). Nesta sala, mãos que ligam pinturas entre si (Pissypaws, 2024 e a aranha não respondeu, 2024), diferentes formatos, suportes e disposições, criaram um lugar de experimentação, onde o fazer e apresentar com “menos polimento, de uma forma mais directa do ateliê para a exposição”[4] ganha forma, dando assim início a um processo que pode vir a mudar a forma de pensar as trajectórias dos artistas deste momento em diante.

Pulso de Seda é orgânico e vivo, como se carregasse marcas do tempo e do processo intuitivo que Rudi Brito e Ana Manso levam a cabo e que, agora, dialogam juntos pela primeira vez. A exposição pode ser visitada até 14 de Dezembro de 2024, no Buraco.
Nota: a autora não escreve sob o abrigo do AO90.

[1] Rudi Brito a propósito do mural na exposição.
[2] Rudi Brito em conversa sobre a exposição.
[3] Isabel Carvalho no texto da folha de sala que acompanha a exposição.
[4] Rudi Brito a propósito da obra Runs Tripped by Splendor, 2024.

Maria Inês Augusto, 33 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) como estagiária na área dos Serviços Educativos e trabalhou durante 9 anos no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada e actualmente desenvolve um projecto de curadoria de exposições de artistas emergentes. Tem vindo a produzir diferentes tipos de textos, desde publicação de catálogos, textos de exposições a folhas de sala. Colaborou recentemente com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas 2023.

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