Quando amoras eram brancas
Elusivo é o caráter do clássico. Alega-se que canónicas são as obras cuja qualidade inalterável transcende o passageiro: nelas cristalizada, a essência da humanidade resistiria ao câmbio de circunstâncias. Mas seria a relevância do clássico advinda não de sua constância, mas de uma rica versatilidade sempre adaptada a interpretações diversas, mesmo antagónicas? Negar a coerência do único significado em prol da coexistência dos múltiplos sentidos é mesmo cambiar regimes existenciais, preterindo a solidez da essência pelo devaneio da existência. “Cada época pode efectivamente julgar que detém o sentido canónico da obra”, escreve Barthes, “mas basta alargar um pouco a história para que este sentido singular se transforme em sentido plural e a obra fechada numa obra aberta”.[1]
Mas talvez a certeza do conhecido e a sugestão do desconhecido não sejam polos opostos, mas duas camadas reforçando-se na mesma estrutura. Os aspectos explícitos da obra dão vida a uma segunda linguagem que não contradiz a primeira, mas que expande as suas possibilidades. Estimulado pelos atributos da obra, o espectador ali encontra mais perspectivas do que julgava possível. “O símbolo é constante”, escreve Barthes, “variáveis são apenas a consciência que a sociedade dele tem e os direitos que lhe concede”[2].
Esta dialética entre o científico e o poético encontra no tema da metamorfose um prisma de fecundas convergências. Em Metamorfoses, Ovídio sintoniza o duradouro e o passageiro mediante a história de um mundo cujas infindas transformações nunca significam a troca integral de identidades, mas uma mais ambígua dosagem: o transformado torna-se aquilo que em segredo já era, conservando também a essência do que perdeu. Vítimas de violentas paixões, suas personagens são arrancadas de seu centro para nas bordas de si acercarem-se do outro. Só preserva a essência quem dela abdica — o amante conhece-se apenas ao encontrar-se no amado. Seus corpos alterados são a manifestação de um insuperável desejo, mesmo no derradeiro ato: no relato de Píramo e Tisbe, um infortúnio do acaso leva o casal a suicidar-se por amor sob os ramos da amoreira. Seus frutos, antes brancos, ao tocarem o sangue, tornam-se para sempre vermelhos.
A Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, agora sob tutela de Nuno Faria, busca o equilíbrio entre o conservar do que se é e o acolher do que se pode ser. Sua mostra 331 Amoreiras em Metamorfose converge novas leituras de obras passadas e interpretações históricas de obras atuais. “O contemporâneo não é só o tempo presente, mas uma interpretação específica dos eventos passados. Aqui há grandes oportunidades para desenvolver novas leituras sobre a obra de Vieira da Silva e Szenes, que sempre alteraram as suas formas de fazer as coisas”, diz-me Nuno ao ser perguntado sobre como um curador de prática autoral e pendor contemporâneo trabalharia o acervo de uma instituição dedicada ao casal de artistas mais canónico do modernismo português. “Fazer uma segunda escrita com uma primeira escrita da obra”, escreve Barthes, “é efectivamente abrir o caminho das renovações imprevisíveis”.[3] Tal infindo jogo de espelhos permeia todas as facetas desta mostra que, assim como a escrita de Ovídio, assimila formalmente o caráter transformativo de seu tema: com duração até o fim de 2025 e em constante câmbio de uma pletora de obras e artistas, parece fomentar-se da paixão partilhada entre Vieira e Arpad para estimular uma metamorfose geral em cinco atos, desde o atual O tecido do mundo até a final Ascenção: Vers La Lumiére. “A metamorfose implica um não-binarismo, um transcender de dualidades. Não creio ser necessário nem desejável a qualquer museu ser um espaço de certezas, mas um lugar que se constrói ao longo do tempo”, diz-me Nuno. “Gostaria que este museu contasse histórias”. Entre homens insetos e deuses mamíferos, elmos de vidro e ramos ósseos, rios venosos e pétalas expressivas, estudos lumínicos e tapeçarias ópticas, delicadas curvas em cor e planos de vidro ondulado, somos conduzidos por um percurso onde o próprio mundo é o corpo que se transforma.
Etiológicos, os relatos de Ovídio explicam a origem oculta das coisas conhecidas. Se ao poeta o real é ponto de chegada, Vieira da Silva não visa revelar o já sabido, mas justo construir algo antes interdito à experiência, numa ânsia que transforma o real convencional num mundo de desconcertante constituição física. Em Le retour d’Orphée, aborda o personagem ovidiano que vai ao Hades buscar Eurídice falecida. A vertigem espacial, os escarpados estilhaços, a altura sedimentar, a vista sufocada e os tons sombrios traduzem o esforço, a angústia e a imprudência daquele que viu sua amante morrer uma segunda vez antes mesmo de voltar à vida. Transeunte entre mundos, Orfeu é tema apto à pintora que tencionou explorar os percalços da metamorfose, deformando formas e linhas na profundeza pictórica, torturando o espaço da perspectiva clássica, compondo estruturas geométricas fracturadas por estilhaços de energia cuja paradoxal densidade assemelha-se à excessiva solidez de um osso regenerado.
Sendo a realidade um encontro entre os nossos mecanismos cognitivos e as condições do mundo, em seus célebres abstratos Vieira volta-se não ao mundo em si, mas à consciência que o percebe — nela, encontra não o deslumbre, mas o drama de um contato jamais esclarecido: ensaiamos estruturas intelectuais que visam estabilizar um mundo em essência imensurável, cuja entropia súbito engole as nossas malhas mentais. Nesta arquitetura em eterna transição, a razão é emotiva e o intelecto intuitivo, a vertigem é estável e o devaneio rigoroso. Se Vieira emprega a geometria para examinar a natureza do real, é mais por convenção que convicção — ou talvez justo para acentuar as tensões entre os métodos de um projeto moderno já desgastado e um real cada vez mais estranho. Em suas obras, a intuição vem tanto auxiliar quanto corromper a estrutura de suas construções que, convictas em seu surgimento tardio e destruição precoce, manifestam o estranho paradoxo da sufocante imensidão: o sujeito racional contempla o abismo para descobrir ver apenas até onde seu parco aparato o permite. Como suas figuras de La partie d’échecs, estamos presos no tecido de nosso próprio intelecto.
Se Vieira quase não cabe dentro de si, Arpad compromete-se com o espetáculo do planeta. Mais ovidiano, seu apaixonado naturalismo não distingue o espírito da matéria — chama Vieira de bicho, e pinta-a como crisálida. Mesmo ao operar metamorfoses, prefere o substrato real do que as coisas são, não as possibilidades que poderiam assumir. Em bosques assombrados ou colinas coloridas, parece transformar-se naquilo que pinta, tão palpável é o encanto que sente mesmo pelo ar escuro entre as árvores, que esfuma em carvão. O peso que sente no mundo impede a proliferação de vazios: suas Conversation são como o entrelaço das palavras entre amantes adensando o ambiente numa relação intocada pelo tempo. Quando adota métodos similares aos da parceira, não partilha de sua angústia claustrofóbica, pois reconforta-se no espaço fechado: como Vieira, tenta dobrar o espaço, mas acaba por criar sólidos translúcidos como prismas dobrados para dentro, conservando cor e energia. Suas mais ousadas abstrações ainda retêm a distribuição de massas e os vestígios originais dos corpos — não se desfaz do mundo. Talvez devido ao seu amor por Vieira, a âncora maior de sua experiência e modelo central de sua prática? Em inúmeras maneiras, transformou o corpo da amante, sem jamais abandoná-lo por inteiro.
Amante do mundo, foi ele o primeiro a partir. Como se do além espargisse em Vieira o vazio que ele, sempre repleto de vida, apenas em morte encontrou, entrega à amante a divina luz que ela empregará em obras tardias como Ariane, dissolvendo seus labirintos numa palidez de calma amplitude. Delgada sob etéreo frescor, a estrutura mental supera o pavor do vazio e curva-se ao mistério do absoluto. Vieira parece quase supor que talvez o alicerce da realidade não seja a matéria, mas o espírito. Quando o amante perde o parceiro, entende o mundo através desta ausência cuja intolerável leveza altera todas as coisas — a morte de Arpad adiciona à Vieira uma nota de transcendência. Tal ímpeto ascensional é a grande metamorfose que fomenta o arco geral da exposição cujo último ato é, sempre ela, a luz. As metamorfoses horizontais de Ovídio, a imanência de Arpad e a transformação vertical de uma Vieira ao fim transcendente estendem as coordenadas da mostra entre o princípio e o fim, o submundo e o além.
Poderia o amor, este jactante sentimento que muda as cores dos frutos, operar tal vertiginosa metamorfose? Quando Orfeu, duas vezes viúvo, enfim regressa ao mundo, talvez tenha aliviado-o ver as amoras antes brancas tingidas do mesmo vermelho que corre as veias dos amantes. Se a arte transforma o particular no universal, Píramo e Tisbe tornam-se todos os casais rompidos que acreditam reencontrarem-se no derradeiro refúgio onde enfim cessam todas as mutações. Poderíamos vê-los portanto como Arpad e Vieira, no além enfim convergindo a devota imanência dele e a investigação cerebral dela num enlace ainda interdito a este mundo onde nada conserva o mesmo semblante.
A exposição está patente até 31 de dezembro de 2025.
[1] Barthes, Roland. (2007). Crítica e Verdade. Lisboa: Edições 70, p. 47-8.
[2] Id., Ibid., p. 49
[3] Id., Ibid., p. 13.