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António Carneiro: O Voo da Águia no Museu do Porto – Ateliê António Carneiro

António Carneiro: O Voo da Águia, com curadoria de Bernardo Pinto de Almeida, inaugura o renovado Ateliê António Carneiro no Porto, com projeto do arquiteto Camilo Rebelo, reunindo obras de um dos mais importantes pintores portugueses – referência do Simbolismo finissecular nacional. O projeto expositivo, dividido por quatro núcleos temáticos, distingue-se pelo diálogo entre as obras de António Carneiro (Amarante, 1872 – Porto, 1930) e uma série de esculturas de Miguel Branco (Castelo Branco, 1963). A exposição enfatiza a ligação da prática artística de António Carneiro com a da sua época, mas também com a do presente e a de temporalidades vindouras, incitando propostas de investigação e de exposição no novo equipamento cultural portuense. Como refere o curador na Folha de Sala: “a exposição procura apontar caminhos futuros para a programação, que poderão servir a estudar no tempo as relações de António Carneiro com o seu tempo, mas também com o futuro da Arte Portuguesa”.

António Carneiro foi pintor e professor na Academia de Belas-Artes do Porto, tendo também sido figura charneira do meio cultural portuense, pela direção da revista Geração Nova e coordenação da secção literária e artística da revista A Águia. Não descorando o seu gosto pela escrita de poesia, revelado em Solilóquios (1930), publicação póstuma pelos seus filhos (o pintor Carlos Carneiro (Porto, 1900-1971) e o compositor Cláudio Carneyro (Porto, 1895-1963)). Discípulo de Marques de Oliveira e de Soares dos Reis nas Belas-Artes do Porto, igualmente foi influenciado pelos novos rumos da pintura parisiense de final do século XIX, após partir para Paris, como bolseiro na Academia Julian, tendo tido como mestres Jean-Paul Laurens e Benjamin Constant. A sua obra destaca-se pela abordagem modernizante à pintura que se fazia no nosso país, influenciando o jovem Amadeo de Souza-Cardoso (Amarante, 1887 – Espinho, 1918). O tríptico A Vida: Esperança, Amor, Saudade (1899-1901) de Carneiro é considerado o iniciador da pintura Simbolista portuguesa, movimento artístico que já estava a ganhar força em França, apologético da metáfora e da poesia, numa mudança de estética representativa para uma figurativa, rompendo com o Realismo e o Positivismo vigentes.

No texto Simbolismos: Entre a Pintura e a Poesia do poeta e ensaísta Fernando Guimarães, que acompanha o projeto expositivo, o autor, após perguntar o que é um símbolo, propõe: “Poderíamos dizer que, no caso da arte, é uma configuração de sentidos em que se desenvolve um novo sentido implícito ou virtual que os integra, criando-se um contexto explícito na obra de arte que se reporta ao que se pode designar – dando-se à seguinte palavra um sentido abrangente, com implicações culturais – por intertextualidade”. Acrescentando: “um símbolo cria sentido ou, melhor, uma espécie de constelação de sentidos, onde o uno (uma palavra num poema ou uma forma colorida num quadro) e o múltiplo (a já referida expansão contextual ou extensão cultural) coexistem”.

António Carneiro: O Voo da Águia, constituída por grandes núcleos temáticos – A Paisagem, A Chave Simbolista, A Família e Diálogos –, revela a obra do artista, proporcionando uma leitura histórica, biográfica e estética. Aliás, o título da exposição é homónimo da biografia que Bernardo Pinto de Almeida escreveu sobre o autor. Ressalvando a pertinência do local onde o projeto expositivo é apresentado: o Ateliê António Carneiro, sob a alçada do Museu do Porto – edifício encomendado pelo pintor nos anos 1920, com o objetivo de juntar no mesmo sítio espaços de trabalho (para si e para o seu filho Carlos Carneiro), de exposição e de habitação para a família.

Em A Paisagem, são apresentadas pinturas com tal temática. Obras que não são tão conhecidas do público, visto serem provenientes de coleções privadas. Neste núcleo, podemos ver uma série de Marinhas e de Noturnos, que vão contrastando pelo tratamento diurno ou noturno dado à paisagem. Notabilizam-se pela dissolução das formas, numa mescla entre areia e mar, horizonte e luar, ondulação, luz e penumbra. Laivos expressionistas, lembrando Edvard Munch (Noruega, 1863-1944) ou as paisagens de Vilhelm Hammershoi (Dinamarca, 1864-1916). Curiosamente, este grupo dialoga com Sem Título (Montanhas) (1910) de Amadeo de Souza-Cardoso, por essa dissolução de formas, assim como Sem Título (Paisagem com Submarino) (2024) de Miguel Branco, que surpreende pela inusitada pequena dimensão, porém singular figuração e ambiente criado, fomentando uma proposição narrativa proveniente da ficção científica.

No seguimento, Chave Simbolista realça como Carneiro seguiu o Simbolismo, após a sua incursão por França, através da exibição do conhecido tríptico A Vida: Esperança, Amor, Saudade (1899-01). Lado a lado à apresentação de obras dos seus mestres: o parisiense Eugène Carrière e Soares dos Reis na Escola do Porto, com destaque para Nossa Senhora da Vitória (Cabeça) (c.1875) e Cristo Morto (c.1873). Do mesmo modo, também são mostradas obras de autores que o inspiraram, tais como Puvis de Chavannes e Rodin, aqui representado pela escultura L’Éternel Printemps (A Eterna Primavera) (1898). Recordando, no decurso da exposição, a conhecida tela Camões lendo os Lusíadas aos frades de São Domingos (1927) junto de vários estudos. E a presença de dois Ecce Homo, um de 1901 e outro de 1902, que se destacam pelas suas diferenças, mas também pela luminância que exalam do fundo da tela, pelo uso das cores, expressão facial vincada, mas serena, perante uma pose acorrentada.

O núcleo Família demonstra, precisamente, retratos feitos por Carneiro da sua família, considerados por Bernardo Pinto de Almeida no texto curatorial: “alguns dos mais altos momentos do género do Retrato na arte portuguesa”.

Finalmente, em Diálogos, é nos dado a conhecer as relações do pintor com alguns artistas da sua época. Destacamos O Autorretrato (sem data) de Sofia de Souza e Santo António Autorretrato (c.1902) de Aurélia de Souza – conterrâneas de Carneiro –, expostos ao lado de autorretratos do pintor. Todavia, recordemos que este núcleo é um dos pontos fundamentais deste projeto expositivo, ou seja, a relação da obra de António Carneiro com a de autores do seu tempo, mas também as possíveis ligações que poderá ter com práticas artísticas contemporâneas. Neste caso, as esculturas de Miguel Branco, expostas nos espaços exteriores do Ateliê, que se destacam pela forma como o artista coloca em evidência um certo deslocamento entre o real e o imaginário, não prescindindo da figuração, potenciando uma grande carga simbólica.

No pátio norte, as esculturas em bronze Sem Título (A partir de Mathias Grunewald) #1 – #9 (2013-24), constituidas por uma série de plintos, onde em cada um está uma espécie de esqueleto humano de pernas cruzadas, causam estranhamento pelo seu carácter mórbido. A propósito, no jardim sul da propriedade, Sem Título (Cavalo Negro) (2017) também provoca admiração pela singular colocação no espaço da escultura em bronze, figurando um cavalo negro sem cabeça, como se fosse uma cenografia, proveniente de uma dramaturgia qualquer. Do mesmo modo, no terraço sul, a série de esculturas em grés negro, cada uma representando uma personagem, talvez de origem alienígena, como Escriba, Testemunha, ou Anão, encontram-se em posição de repouso, instigando a produzirmos uma narrativa. Na senda pela procura de uma constelação de sentidos criados pela coexistência entre o uno e o múltiplo, como foi referido anteriormente por Fernando Guimarães sobre o símbolo.

António Carneiro: O Voo da Águia está patente até 29 de dezembro de 2024 no Museu do Porto – Ateliê António Carneiro.

Ana Martins (Porto, 1990) é investigadora doutoranda do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2022.12105.BD). Frequenta o Doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, tendo concluído o Mestrado em Estudos de Arte – Estudos Museológicos e Curadoriais pela mesma instituição. Licenciada em Cinema pela ESTC do IPL e em Gestão do Património pela ESE do IPP. Foi investigadora no Projeto CHIC – Cooperative Holistic view on Internet Content apoiando na integração de filmes de artista no Plano Nacional de Cinema e na criação de conteúdos para o Catálogo Online de Filmes e Vídeos de Artistas Portugueses da FBAUP. Atualmente, desenvolve o seu projeto de investigação: Arte Cinemática: Instalação e Imagens em Movimento em Portugal (1990-2010), procedendo ao trabalho iniciado em O Cinema Exposto – Entre a Galeria e o Museu: Exposições de Realizadores Portugueses (2001-2020), propondo contribuir para o estudo da instalação com imagens em movimento em Portugal, perspetivando a transferência e incorporação específica de elementos estruturais do cinema nas artes visuais.

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