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Walk&Talk – Uma Bienal de Afetos Abundantes e Gestos Relevantes

Fomos até São Miguel, nos Açores, para o Kick-Off da Bienal de Artes Walk&Talk, um projeto fundando em 2011, sob a forma de um festival, anual, em Julho — mas que agora promete um formato mais (!) prolongado, envolvido e enraizado, o qual requer gestos mais demorados, recíprocos e engajados e para tal tornar-se-á Bienal.

Eu nunca tinha estado no Festival, na Ilha ou no Arquipélago, o que tornou esta experiência ainda mais (sensorial e) próxima das perspectivas e expectativas da proposta da Bienal, que acontecerá pela primeira vez entre Setembro e Novembro de 2025. Foram três dias que reproduziam um pouco daquilo que prometem cumprir no ano a seguir — em lugar das duas semanas que compunham o Festival, a Bienal, por sua vez, terá outra extensão temporal: serão dois meses de menor intensidade e extratividade (de valor mencionar a preocupação de deslocá-los para fora da época alta), mas maior cumplicidade e efetividade, o que propicia a longevidade dos projectos, dos programas e dos afetos.

Começámos por ser recebidos num auditório da Universidade dos Açores para uma apresentação do que será a primeira edição. Foi um momento importante de revelação daquilo que foi um trabalho moroso e minucioso, talvez desde a pandemia. Jesse James, diretor artístico da Bienal e da Associação com o mesmo nome, chamava ao palco as curadoras convidadas para esta edição da Walk&Talk — Claire Shea, Fatima Bintou Rassoul Sy e Liliana Coutinho. Dentro ou fora do palco, estavam lá todos, a equipa central, as curadoras e os artistas convidados[1] (locais e internacionais), representantes do governo regional, bem como residentes e transeuntes — o que evidenciou, desde logo, duas das premissas principais: a de situar, encorporar[2] e materializar o cerne das questões, bem com a de baralhar a periferia insular ao centralizar esforços, afetos e projectos. Não houve participações por Zoom, fomos todos à Ilha inaugurar um processo que parte sobretudo de um gesto consciente e presente, mesmo que intermitente — vamos, voltamos, ficamos, voltamos, vamos —, que constrói ou fecunda imaginários “a partir da” ilha em vez de “da” ilha[3]. Claire Shea, de Toronto, Canadá, começa por referir que, apesar da distância espacial, está bastante familiarizada com uma(s) certa(s) açorianidade(s), pois vive em Little Portugal, um bairro com uma forte presença da comunidade açoriana — uma diáspora que, ainda hoje, atinge uma comunidade de cerca de 1,5 milhões de pessoas, em comparação às 250 mil que habitam o arquipélago. O que abre a possibilidade de pensar a localidade como uma estrutura de sentimento e sensibilidade (structure of feeling, nas palavras de Arjun Appadurai[4]) e não exclusivamente em termos de território; as particularidades da Ilha podem ultrapassar as suas fronteiras, podem permutar, regatear, voltar, revelar e restaurar.

Sobre ir e voltar, também importa mencionar a particularidade da Universidade dos Açores — onde fomos recebidos para a apresentação da primeira edição — não compreender qualquer formação artística, o que implica um deslocamento (e privilégio, por consequência), bem como outrora, uma desarticulação com a Ilha — por muito que regressassem, os artistas que partiam em busca de formação especializada não encontravam grande estimulo ao exercício das suas práticas. Isto porque também não existia uma rede institucional, ou mesmo informal, de espaços culturais (ou de produção artística e artesanal) que dialogassem entre si. Essa dinâmica, de incentivo e articulação de produção e coletivização, constitui grande parte da estratégia do Walk&Talk — não perante uma atitude de coleccionalização, mercado ou visibilidade do evento, ou de São Miguel, mas diante de uma noção da potencialidade da investigação artística e, consequentemente, da arte contemporânea para a renovação dos modos de observação, utilização e significação dos espaços e tempos da Ilha. Enquanto festival, o Walk&Talk já tinha essa ambição posta em concretização, em alguns casos, como é exemplo o RARA (Residência de Artesanato da Região dos Açores), que surge com o festival em 2014, mas que hoje avança com autonomia própria em paralelo ao festival, como um rizoma. Um rizoma não se baseia em nenhum modelo estrutural ou generativo; ao invés, brota de mil platôs, “regiões contínuas de intensidades, vibrando sobre elas mesmas, que se desenvolvem evitando toda a orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior”[5]; ramifica-se horizontalmente sob um sistema aberto capaz de articular os mais diversos elementos e conceitos numa rede de relações. Novas ideias podem surgir a partir dessas interações, mas a rede sofre rupturas e cria séries heterogéneas, que se desenvolvem autonomamente segundo as suas linhas de fuga — podendo sempre voltar a reconstituirem-se. Esta questão, de institucionalização cultural por meio de uma rede-rizoma é muito importante para a consolidação da Bienal, contou-nos Jesse James — e o caso da Universidade pode funcionar como um prelúdio dessa aposta, de fertilização e articulação com outras instituições e entidades que trabalham “a partir da” Ilha. Quem sabe, num futuro (próximo), talvez haja abertura, disposição e condição para que seja re-estabelecido o ensino artístico na Universidade dos Açores.

Um rizoma também é constituído por “Gestos de Abundância”, tema da primeira e próxima edição da Bienal. Na verdade, esses gestos talvez precedam o rizoma, que os articula e que deriva, ao invés, da abundância do ecotone, outro motivo central na Bienal — que se afasta da tendência recorrente de trabalhar a partir da escassez eco-sócio-cultural; não partem do que falta, mas do que abunda enquanto pensam de que forma se pode gesticular e redirecionar essa riqueza para modelos e contextos de cooperação (regional e internacional), onde o que abunda está em falta, e vice-versa, como esclarece Liliana Coutinho. Retornando à centralidade do ecótono para a epistemologia rizomática que sustenta a Bienal, importa esclarecer o “efeito marginal” decorrente deste cenário que na ecologia se denomina ecótono e na linguística “zona de contacto”[6].

Na ecologia — a ciência que estuda a relação dos seres vivos com o seu meio envolvente —, o efeito marginal apresenta uma oportunidade de grande criatividade. Este efeito ocorre num ecótono, que consiste num espaço de transição entre duas ou mais comunidades distintas de seres vivos. É neste espaço que se verificam os contactos entre as múltiplas espécies vizinhas. A sua grande riqueza reside no facto de conter, geralmente, tanto organismos das comunidades adjacentes como, para além desses, organismos característicos do próprio ecótono, que nascem da confluência dessas comunidades vizinhas. Tome-se como exemplo as orlas e as margens dos rios. Ou seja, no ecótono o número de espécies é sempre maior do que nas comunidades envolventes, tornando-se, efectivamente, mais rico e complexo do que as comunidades que lhe deram origem: “a tendência que se verifica para a maior densidade e variedade nas zonas de junção entre comunidades é conhecida por efeito marginal”[7]. É sobre essa condição marginal e periférica que o Walk&Talk reconhece a sua abundância, centralidade e criatividade.

De volta ao rizoma: este também se concebe de falhas, de erros, de mudanças de direção, de pausas, retornos e apenas por vezes muitas certezas. A errância é uma componente integral em processos que não se baseiam em nenhum modelo estrutural ou generativo, em processos livres de resultados de produtividade e é outro ponto crucial da Bienal que fizeram questão de sublinhar. Fatima Bintou Rassoul Sy, uma das curadoras convidadas, estendeu-se sobre essa questão no dia da apresentação ao partilhar uma expressão (e filosofia) popular sul-africana: “Angazi, but I’m sure”, que significa “não sei, mas tenho a certeza”. É uma frase contraditória, normalmente dita no início de uma resposta: “– Como vou parar à praia? – Não sei, mas tenho a certeza que se fores em frente chegas lá”. O inquirido não tem a certeza do que sabe; ou, talvez, tenha a certeza, mas não sabe como o dizer; ou então, sabe, mas não sabe o que sabe. Essencialmente, é uma expressão que afirma a centralidade da experiência, da improvisação e da imaginação como formas de conhecimento sob si mesmas.

Todas estas questões que avançam a filosofia e eistemologia da Bienal foram-nos sublinhadas tanto na sessão de apresentação, como ao longo dos restantes dias. No sábado, fomos em Excursão aos Vários Lados da Questão (importa referir, num percurso que incluía a periferia e não apenas Ponta Delgada), conhecemos a professora Zélia Travassos e o projeto de mapeamento eco-social das Sete Cidades, por Maria Emanuel Albergaria. Terminou-se o dia nas Termas da Ferraria, onde se tomaram banhos quentes num dia frio e chuvoso. No domingo, participámos numa Assembleia, construída por Vergílio Varela, onde ninguém (nem a imprensa) ficou de parte — pensou-se e dialogou-se entre os habitantes e os viajantes sobre os territórios, as comunidades, as açorianidades e, nesses contornos, o que podem as artes. Também não quero deixar de referir que almoçámos, jantámos[8] e dançámos, pois como Jesse James bem fez tenção de sublinhar, essas também são formas de participar e de fazer cultura, por meio do lazer.

Neste tópico, resta mencionar a Vaga — Espaço de Arte e Conhecimento e sede da Bienal Walk&Talk, bem como da Associação Anda&Fala e que funciona como extensão da Bienal nos tempos em que ela não está a decorrer, mas que assume um contínuo envolvimento com as comunidades na esfera cultural, bem como quotidiana. Levaram-nos a ver a exposição do Prémio[9] Nova Vaga, Corpos Magmáticos, curada por Marta Espiridião e com os trabalhos de Isabel Medeiros, Joana Albuquerque e Sofia Rocha. Três artistas emergentes, naturais do arquipélago, mas que habitam intermitentemente entre as Ilhas e o continente (Lisboa e Berlim), o que Joana Albuquerque acaba por referenciar, literalmente, como Um pau de dois bicos. Durante um ano, trabalharam, em conjunto com a curadora, numa espécie de intercâmbio comunal com a Ilha. O vulcão acabou por se tornar o tema central — a própria entrada na exposição dava-se por meio de uma experiência sensorial que fantasiava uma cratera. Sofia Rocha mimica os sistemas digestivos do vulcão, entidade viva e membro da Ilha, entre desenho, pintura e instalação. Isabel Medeiros trabalha em torno da memória e dos processos em redor da sua preservação. Numa dialética materialista, em relação às verbas que lhe foram atribuídas, compreendeu que queria explorar o trabalho em vidro — e a partir daí experimentou encapsular pedras vulcânicas, bem como fotografias antigas —, o que exemplificou o conflito meta-material, na incapacidade do vidro suportar tanto a pedra; bem como a proximidade entre a memória conceptual e a memória material. Em ambas, a imagem (fotográfica) desvanece. Por último, Joana Albuquerque apresenta três trabalhos em torno do sentimento conflituoso entre identidade, território e permanência. Em Grandes Podões, por exemplo, recorta grandes silhuetas que reproduzem os espaços ocupados por corpos, em repouso, na zona do Pesqueiro — local central tanto à Ilha como à Bienal, sublinhando a importância da tranquilidade sob a produtividade.

Após toda esta exposição, não parece que estive a delinear os traços essenciais de uma Bienal de Artes, mas de um projeto sócio-ecológico de regeneração participativa através das artes e da cultura, e penso que é isso que o Walk&Talk pretende como Bienal. Se, inicialmente, enquanto festival, grande parte das intervenções tendiam a ocupar os muros da cidade (e as paredes do museu e da galeria), hoje, à medida que se constrói o caminho para a Bienal, a relação com o território veio a tornar-se mais enraizada, comprometida e envolvida. Ou seja, a proposta curatorial retira-se da exclusividade material para envergar num conjunto de exercícios artístico-culturais, inter-relacionais, entre as várias agências que compõem as açorianidades.

 

[1] Alice Visentin, ANDLab, Candice Lin, Colectiva MALVA, Ebun Sodipo, Helle Siljeholm, Gala Porras-Kim, Janilda Bartolomeu, Joana Sá, Lucy Bleach, Mae-Ling Lokko, Maria Emanuel Albergaria, Meg Stuart & Forúm Dança, Nadia Belerique, Resolve Collective, Uhura Bqueer & Soya the Cow, e co-produções com Hotel Europa e Os Possessos.
[2] Sigo a tradução de Eduardo Viveiros de Castro do verbo inglês “to embody”. Segundo o autor, nem ‘encarnar’ nem ‘incorporar’ são neologismos realmente adequados. In: Viveiros de Castro, E. (2002). A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.
[3] Cf.: Marincu, D. (2024). “Aprender o nosso presente comum… While we Walk the Talk”. In M. Mesquita (Ed.), Walk&Talk 2011-2022: o que não sabes merece ser descoberto. Açores: Anda&Fala, p. 220.
[4] Appadurai, A. (1996). Modernity at large: cultural dimensions of globalization. Minneapolis, MN :University of Minnesota Press.
[5] Deleuze, G. & Guattari, F. (1995). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia (Vol. 1). Editora 34, p. 32.
[6] Sobre este assunto, consultar: Pratt, Mary. L. (1991) Arts of the contact zone. Profession 91. 33-40. New York: MLA.
[7] Odum, E. (1997) Fundamentals of Ecology. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p. 250.
[8] Receitas locais e ingredientes regionais e sazonais.
[9] Este prémio, na verdade, desdobra-se em três finalistas, ao invés de um vencedor — apostando da comunalidade em detrimento da competitividade através da distribuição (possível e exequível) das verbas destinadas à criação artística.

Benedita Salema Roby (n. 1997). Investigadora e Escritora. Doutoranda em Estudos Artísticos: Arte e Mediações, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. Mestre em Estética e Estudos Artísticos e Licenciada em História da Arte, pela mesma instituição. Neste momento encontra-se a realizar uma investigação acerca da correlação entre o graffiti (escrita criativa transgressiva) e a construção da esfera contra-pública e proletária, na cidade de Lisboa. Tem colaborado em projetos independentes com fotógrafos e writers, como é o caso do recente foto-livro da artista Ana Moraes aka. Unemployed Artist, Lisboa e Reação: Pixação não É Tag.

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