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IV Capítulos na Fundação Carmona e Costa

Uma linha desliza pela parede, escapa para serpentear no universo natural, mergulha em suspiro para recolher vestígios de um passado e reemerge, etérea, num sonho azul. Francisca Portugal, curadora da exposição IV Capítulos, patente na Fundação Carmona e Costa, fez-se valer dessa linha para coser quatro mundos distintos – cada um habitado por uma narrativa formal e visual própria, que nos esclarece relativamente à identidade e à investigação levada a cabo por cada artista.

Rainer Maria Rilke, sobre a natureza da linguagem artística, diz-nos que esta é “comum a todos, mas que não foi feita por ninguém, porque todos a fazem continuamente, a vasta, sussurrante e oscilante sintaxe (…). Tudo o que é próprio exige, se não quer ficar em silêncio, uma linguagem própria… Dizer o igual com as mesmas palavras não é progresso.”[1] IV Capítulos emerge como um lugar de celebração dessas linguagens próprias, das múltiplas formas do fazer artístico e dos seus desdobramentos narrativos individuais. Apesar de reconhecidas as referências conceptuais e visuais conjuntas que derivam do contexto artístico partilhado pelos artistas apresentados, cada sala funciona como uma proposta de mundos em órbitas distintas, que possuem escavações e palavras próprias e que se desdobram na esfera do íntimo.

A mostra surge, num primeiro momento, da motivação e interesse por parte de Maria da Graça Carmona e Costa em conhecer e mostrar novas práticas de jovens artistas. A galerista, promotora e mecenas de arte contemporânea, acompanhou o trabalho desenvolvido pela curadora Francisca Portugal e fez o convite para que esta integrasse a programação da Fundação. Em conversa, Francisca Portugal diz-nos que, para homenagear a curiosidade e a sua preferência pelo desenho, convidou “quatro artistas emergentes para apresentarem a sua primeira exposição institucional em Lisboa, desenvolvendo projetos que exploram o desenho no seu conceito mais amplo”. IV Capítulos reúne, ao longo de quatro salas, obras de Hugo Cubo, Laura Caetano, Bárbara Faden e India Mello, artistas cujas linguagens, distintas em materialidade e abordagem, articulam um diálogo sobre identidade, memória e tempo. Apesar de serem da mesma geração e partilharem a mesma cultura visual, cada prática artística aqui apresentada possui uma identidade singular: “na prática, as abordagens distinguem-se profundamente e é, precisamente na diversidade, que o conceito da exposição se confirma: a criação de quatro capítulos diferentes de uma narrativa ficcional ou de uma História da Arte”[2].

A curadora, que tem vindo a dedicar-se à reflexão e à investigação sobre a construção da História, em particular da História da Arte, refere, no texto da folha de sala, que considera que as afinidades e as redes informais desempenham um papel crucial na explicação ou justificação de determinados acontecimentos: “hoje, a História da Arte já não se pode categorizar em vanguardas ou estilos fixos. Por isso, proponho uma abordagem à História da Arte que, tal como estes artistas demonstram com o seu trabalho, se apresenta como um conjunto global e ampliado de pontes, sejam elas formais ou informais (…). A organização da História da Arte pode assemelhar-se à estrutura de uma obra de ficção, onde as conexões e as narrativas emergem de uma teia diversificada”. A estrutura da exposição é precisamente pensada de forma a permitir o contar de uma história ficcional através de exposições individuais, propondo uma espécie de analogia ao acto de ler, onde cada sala apresenta uma narrativa própria, reforçando a identidade única de cada proposta dentro do conjunto da exposição. A escolha deste formato é, também, resposta a uma crítica recorrente entre os artistas: “a escassez de oportunidades para exposições individuais e a falta de confiança das instituições e dos curadores. De um ponto de vista curatorial, esta abordagem a uma exposição coletiva, centrada na identidade artística individual, é radical. Numa exposição coletiva convencional, os trabalhos seriam tipicamente dispersos e misturados pelas diferentes salas”, escreve Francisca Portugal, novamente na folha de sala. É importante também esclarecer, relativamente à exposição, que as obras apresentadas foram criadas especificamente para o espaço, com total liberdade concedida aos artistas. “Esta oportunidade de expor neste espaço é singular, e a decisão conjunta de elaborar projetos específicos para este contexto foi essencial para garantir uma ocupação harmoniosa e a criação de ambientes imersivos e focados em cada prática artística”[3].

Sobre os trabalhos apresentados:

Inspirado pelo universo da banda desenhada, Hugo Cubo combina o traço espontâneo com a monumentalidade, transformando o espaço expositivo numa extensão da sua investigação visual. O trabalho reflete o seu fascínio pela iconografia e pela linguagem visual popular, onde figuras ampliadas e pintadas diretamente na parede (mural com excertos aumentados a partir do desenho Criações: A Cabeça, 2024) criam um fundo dinâmico, que interage com os desenhos a carvão e esferográfica a partir do tradicional boneco de modelo, revelando um jogo provocativo entre tradição e deslocamento (ex. Cabeça tronco e membros: O Caminhante, 2024). O traço livre e instintivo torna-se aqui uma reflexão sobre o valor atribuído à espontaneidade e à habilidade técnica no campo das artes visuais.

Bárbara Faden transporta-nos, como é habitual, para um universo próprio, onde natureza, espiritualidade e memória coabitam. Os seus trabalhos, caracterizados por um hibridismo entre abstração e figuração, exploram espaços oníricos e afetivos, criando narrativas íntimas que refletem a relação entre o que é do humano e do natural (ex. This temperament, this temperature, 2024 e Romance, 2024). Através de uma poética visual que se move entre o tangível e o imaterial, Faden propõe uma meditação sobre lugares de pertença e transcendência, oscilando entre paisagens micro e macro, podendo ser vistas tanto como amostras de uma colheita íntima quanto como capturas à distância. Estas composições entrelaçam-se em perspectivas e profundidades num imaginário profundamente ligado aos interesses da artista, aos objectos íntimos e “lugares-sentimento”, nomeadamente na vitrine Desejos (2024), composta por arquivo da artista.

Laura Caetano, por sua vez, opera num território de tensão entre destruição e reconstrução. Os seus trabalhos, compostos por materiais efêmeros, evocam paisagens místicas onde fragmentos se reorganizam em novas narrativas. Há, na sua obra, uma reflexão sobre o desaparecimento e a permanência, sobre aquilo que é perdido, mas que deixa vestígios no imaginário. A inspiração inicial de Laura para esta exposição surgiu dos frescos de Matera, em Itália. O seu fascínio pela História da Arte e pela pintura antiga europeia manifesta-se nos ícones que pinta através de uma paleta de castanhos, negros, azuis e cinzentos que sugere um efeito patinado em mãos, velas e outros elementos. Há uma atmosfera nostálgica conseguida através da ideia de ruína e fragmentos sublinhando a fragilidade da natureza das coisas.

India Mello tem vindo a debruçar a sua investigação sobre o comportamento humano e os fenómenos psicológicos através da escultura. As suas obras processam experiências entre o corpo e a natureza, explorando a tensão entre opostos: vida e morte, presença e ausência. Ao criar formas que habitam a intersecção entre matéria e imaginação, Mello conduz o espectador a uma experiência introspectiva. A artista desenvolveu um projeto em que o desenho se manifesta através da tridimensionalidade da linha através da sua escultura (Satellite of Love, 2024) e da cianotipia, obtida pela ampliação de objetos do seu quotidiano sobre tecidos impressos que revestem toda a sala (Fotogramas, 2024). O principal objetivo destas peças é criar uma experiência física para o público. O desenho das luzes e a escolha das cores pretendem provocar uma sensação simultânea de exacerbação e calmaria, atribuindo ao desenho e à escultura novas percepções e significados.

Ao reunir estes quatro artistas, IV Capítulos transcende uma leitura linear, permitindo que o público experiencie o espaço expositivo como uma constelação de histórias e sensações. Celebra tanto o passado como a transformação do presente. Faz homenagem às individualidades artísticas, mas também ao testemunho da potência colectiva da arte como linguagem universal através da individualidade. Reafirma a importância de criar espaços onde o experimental e o pessoal coexistam, expandindo os limites do que entendemos como linguagem visual e narrativa. Mais do que um exercício estético, IV Capítulos convida-nos a refletir sobre a História da Arte e como esta é feita de expressão entre o íntimo e o coletivo.

A exposição pode ser visitada até dia 1 de Fevereiro de 2025.

 

Nota: a autora não escreve sob o abrigo do AO90.

[1] Rilke, Rainer Maria. (2009). Da Natureza, Da Arte e Da Linguagem. Largebooks, p. 65.
[2] Francisca Portugal a propósito da exposição.
[3] Francisca Portugal sobre a exposição.

Maria Inês Augusto, 33 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) como estagiária na área dos Serviços Educativos e trabalhou durante 9 anos no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada e actualmente desenvolve um projecto de curadoria de exposições de artistas emergentes. Tem vindo a produzir diferentes tipos de textos, desde publicação de catálogos, textos de exposições a folhas de sala. Colaborou recentemente com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas 2023.

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