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Técnica mista sobre papel #7 – Le goût de la… manteiga!

Foi numa jornada de calor, um momento inesperado — faz agora cinco meses. Era Junho, portanto. Em Paris, centro de actividades culturais e gastronómicas, num balcão de um bar de vinhos, sentámo-nos para uma pausa. A fome era alguma, a sede sempre impecável. O bar era pequeno, perto de uma avenida movimentada, mas escondido o suficiente para dar ares de tranquilidade. Era simples, sem grandes questões. O principal ali eram os vinhos, diversos, das inúmeras regiões de França com os seus singulares terroirs. Manifestámos a vontade de dar uma vista de olhos pelo menu de petiscos. O rapaz do estabelecimento, luso-falante, percebeu alguma fome e serviu umas fatias de pão que vinham acompanhadas por uma concha de vieira. A concha de vieira, vazia do seu animal, tinha uma pasta amarela besuntada num dos lados. Tinha acabado de ser posta com uma espátula. Uma manteiga subtil, natas batidas no seu esplendor, flocos de sal a evidenciar sabor. Era linda. Não sei adjectivar melhor. Era mesmo a mãe das manteigas, a manteiga que não parece só gordura uniforme, a manteiga que refresca. A manteiga que se sente ter sido batida com varas de arame, quais procedimentos manuais que conferem mais sabor e intenção. O seu gosto era leve, salgado na medida certa, com vontade de comer às pazadas. Ao fim de dois bocados de pão, enquanto hesitávamos no resto a pedir, já só pensava que era ficar ali a hora do lanche toda a comer pão com manteiga. Dito assim parece desmerecedor. Mas a melhor das manteigas eleva qualquer pão. Não me lembro mesmo do pão nesta situação.

Tive de perguntar que manteiga era aquela, que vinha assim esborrachada num canto de uma concha. O rapaz achou graça ao assunto, provavelmente deveria ser uma manteiga que já se habituou a comer. Antes de falar dessa manteiga, quero apenas reforçar que gosto de manteiga. Procuro manteigas, comparo manteigas. E ainda bem que cheguei a viver em França. Porque as coisas boas, de sabor rico e autêntico, muitas vezes não são passíveis de ser comercializáveis no espaço comum. Queijos e manteiga, eram os pedidos quando vinha a Portugal visitar. Vacas felizes nos prados da Bretanha, sal do melhor, da Normandia. Ah, a beleza das composições geográficas!

Sem qualquer apelo publicitário, a melhor manteiga portuguesa, no meu entender, é a Manteiga com Sal da Primor. É outra manteiga linda, esbranquiçada, leve, salgada, que apetece espalhar em torradas, em montículos que vão derretendo, mas formam pequenas ilhas. Há países em que a manteiga é uma enorme tristeza. Fácil de barrar deve ser das piores imagens que alguém pode ter para acompanhar um pão.

Mas retomando esta belíssima experiência de manteiga neste pequeno bar escondido em Paris. Perguntei que manteiga era aquela. E o rapaz, sem hesitações, apontou para a matriz-manteiga. Uma montanha de manteiga amarela clara, composta de inúmeros barramentos, feita e moldada assim mesmo à mão, com uma espátula de madeira escura espetada ali para o meio. A espátula tinha acabado de ser pressionada com um troço daquela manteiga, num canto de uma concha de vieira, para nós. Tive um momento de revelação. Uma espécie de flash imediato de uma pintura que era exactamente aquela imagem que eu via. Como a pintura-revelatória era do século XIX, não me ocorreu que eu veria em plena tarde de Junho do século XXI, um artefacto igual. Mas rapidamente desfiz o pensamento. É França, lugar onde a gastronomia é uma manifestação cultural com procedimentos históricos. Pedi para olhar mais de perto a montanha de manteiga. O rapaz levou a manteiga até mim. Eu fazia-me de entendedora, a apreciar as camadas heterogéneas, os laivos de branco e de amarelo, como uma espécie de papel marmoreado, aqui no puro deleite de gordura. E tive uma certeza naquele momento: compreendi muito melhor o Motte de Beurre (1875-1885) de Antoine Vollon. Este motte de beurre que eu ali via, era igual ao que Vollon pintou. Quantas vezes podemos dizer isto? Algumas naturezas-mortas parecem manter esse encanto. A certeza de que há peixes, frutas e doces que nunca mudam, apesar dos tempos. Em Motte de Beurre, há um cariz impressionista na representação desta temática tão intemporal. As pinceladas que compõem a manteiga parecem ter sido feitas ao ritmo que a própria manteiga foi modelada. É uma construção espatulada, camadas de tinta sobrepostas para dar a sensação de que a manteiga foi apanhada a meio de ser desbastada. A espátula representada assim o evidencia. Apresenta-se na vertical, espetada depois de mais um serviço, submersa naquela montanha, exactamente como eu vi na manteiga real do século XXI. A pintura parece captar esse momento de transição, uma impressão leve e fugaz, antes de vir alguém desbastar mais outro pedaço com a dita espátula de madeira. É puro deleite. Visual, e porque é um sabor reconhecível, também gustativo. Familiar, próximo. Tão próximo que é parte do pequeno-almoço de tantos de nós espalhados por aí, nas geografias onde se faz e se celebra a manteiga. A pintura de Vollon resgata o que lhe pareceu ser um momento quotidiano banal, com a mais natural das matérias-primas. Revelatório é saber que ainda hoje se pode encontrar por aí. Ainda que seja num recanto de um bar, we will always have Paris.

Luísa Salvador (Lisboa, 1988) é artista visual e investigadora. É doutora em História da Arte Contemporânea na NOVA FCSH, tendo sido bolseira da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia (2015-2019). Tem Mestrado em História da Arte Contemporânea da NOVA FCSH (2012) e Licenciatura em Escultura da FBAUL (2009). Paralelamente a esta atividade, desenvolve a sua prática artística. Expõe regularmente desde 2012. Foi vencedora do Prémio Jovens Criadores 2018 na categoria de Artes Plásticas. A par da sua prática artística desenvolve também uma atividade escrita, entre textos teóricos e crónicas. Fundou em 2018 a publicação trimestral “Almanaque — Reportório de Arte e Esoterismo”, da qual é editora. Vive e trabalha em Lisboa.

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