Afinidades cartográficas no MAC/CCB
Tenho pensado sobre mapas, sobre o cinema como uma ferramenta de cartografia. Do latim charta + graphien, a cartografia refere-se ao processo de elaboração de mapas, expressões gráficas que condensam o mundo numa representação visual. Como um fantasma velado nas arestas de tudo o que vejo, este foi o conceito que acompanhou a minha visita às quatro exposições temporárias patentes no MAC/CCB. Afinal, o distanciamento de uma presença fantasmagórica é intrincado. É quando dela nos damos conta que a tornamos real: como se a sua existência se concretizasse somente quando acusamos a sua receção. Depois, permanece connosco. E é talvez por isso que em todas estas exposições reconheço um ímpeto para a escrita, uma compulsão visceral para a delimitação e registo do espaço. A escrita de mapas – dos espaços que habitamos ou do espaço que em nós habita – parece condição necessária à nossa experiência no mundo. Somos cognitivamente imperfeitos e, por isso, escrevemos. Mapeamos obsessivamente o que, entre o incognoscível, nos é mais próximo: o espaço urbano, a intimidade e o viver-em-comum.
No piso 0, dedicado à programação do Centro de Arquitetura, encontramos duas exposições: Homo Urbanus. A Citymatographic Odyssey by Bêka & Lemoine e Hestnes Ferreira – Forma | Matéria | Luz.
A primeira, com curadoria de Justin Jaeckle, é uma apresentação de Homo Urbanus, um projeto desenvolvido pela dupla criativa Bêka & Lemoine desde 2017. Organizada em torno da projeção de quatro filmes – gerados a partir de excertos das 13 impressões citadinas que, até à data, compõem o projeto -, a exposição mostra os sons e imagens de 13 cidades distintas. De Tóquio a Rabat, de Veneza a Bogotá, os filmes constituem um mapeamento do espaço urbano e, simultaneamente, uma documentação do gesto que pontua esse território construído. Assinale-se, no entanto, que as cidades não estão identificadas. Essa é uma tarefa que recai sobre o espectador. Num limbo entre o acaso e a identificação, detive-me sobre um longo excerto do filme realizado em Nápoles.
Com uma notável atenção ao detalhe, Nápoles aqui representada não é distante de Nápoles que – numa qualquer semana de agosto, em 2022 – visitei. Reencontro o caos inconfundível. O azul do mar contra o tijolo exposto dos edifícios no Quarteirão Espanhol. A Madonna e o Maradona. O ruído das motorizadas nas ruelas íngremes e labirínticas. Esses recantos onde, escreve W. Benjamin, “mal se percebe o que está sob construção e o que já encontrou em decadência”[1]. E, ao largo da costa, o Vesúvio: silencioso, impenetrável, uma presença com uma força demolidora contida.
Mas a impressão de Nápoles não vem só. Surge inserida numa malha visual e sonora complexa. Dispostas frente a frente, as quatro projeções de vídeo fundem-se entre si. Da mesma forma, também a disposição das colunas de som permite a justaposição da paisagem sonora das várias cidades. São estas decisões expositivas que expandem o horizonte da perceção e inauguram uma comparação entre diferentes ambientes urbanos. Desde as crianças que incorporam a rua nas suas brincadeiras, às multidões que inevitavelmente se formam, identifico um radical comum a estas cidades. E esse radical reside, sobretudo, numa relação ininterrupta entre o corpo e a cidade. O Homo Urbanus não sobreviverá além dos limites do cimento. O seu ritmo biológico é já o ritmo do espaço que habita. Numa espécie de co-definição, o homem mapeia a cidade, e a cidade – e a sua cartografia – fica inscrita no seu corpo.
A exposição Hestnes Ferreira – Forma | Matéria | Luz dá continuidade a esta reflexão. Desenvolvida em articulação com a Fundação Instituto Marques da Silva, esta é uma exposição dedicada à obra do arquiteto português Raúl Hestnes Ferreira (1931-2018). Trata-se de uma seleção de 13 projetos, entre eles o Bairro Fonsecas e Calçada, a Biblioteca de Marvila e a Unidade Residencial João Barbeiro, que refletem os conceitos basilares da sua prática: a forma, a matéria e a luz. As plantas arquitetónicas, as maquetes e as fotografias selecionadas revelam, é certo, uma preocupação com a simetria, a proporção e a ordenação das formas geométricas. Ainda assim, interessa considerar a sua afinidade com um exercício cartográfico. Hestnes Ferreira recorre frequentemente ao desenho a carvão. As suas decisões de projeto emergem nas manchas mais carregadas, isto é, nas linhas repetidamente traçadas pela mão. Neste sentido, mais do que um mapeamento do espaço urbano, a sua obra constitui um mapeamento do gesto, um registo gráfico do seu movimento – um decalque do próprio corpo no recinto da cidade.
Ora, se as exposições anteriores refletem sobre o espaço urbano exterior, Intimidades em fuga. Em torno de Nan Goldin remete-nos para múltiplos lugares de intimidade. A exposição, com curadoria de Nuria Enguita, reúne trabalhos de inúmeros artistas internacionais e foi pensada em torno da série fotográfica The Ballad Of Sexual Dependency (1973-1986), de Nan Goldin. Ao longo de um extenso corredor da galeria, são apresentadas sequencialmente 126 fotografias da série que pertencem à Coleção Ellipse, depositada no MAC/CCB. As imagens resultam de um trabalho fotográfico próximo, onde a câmara de Nan Goldin – sempre invisível – é uma extensão do seu próprio corpo. Violentamente vívidas, estas fotografias mapeiam os não-lugares da cidade de Nova Iorque: os quartos de hotel, os clubes queer, e o interior das casas onde o grupo de amigos da artista se reunia. São um registo da sua intimidade e, ao mesmo tempo, um trabalho quase antropológico sobre as décadas de 70 e 80, marcadas pela libertação sexual, pela toxicodependência e por uma epidemia mundial de AIDS.
Quando colocado em diálogo com as restantes peças da exposição, este conjunto fotográfico encaminha-nos para diferentes declinações do conceito de intimidade. Nan Goldin sugere que a intimidade corresponde a uma relação entre os corpos: uma ligação romântica e sexual, mas, sobretudo, de amizade e companheirismo. Marina Abramović, em Relation in Space (1977), aproxima a intimidade de uma interação entre os corpos no espaço. Revela que coexistência – ainda que pontuada pelo silêncio – pode ser profundamente íntima. Sanja Iveković, com a sua experiência na Inaugurazzione Alla Tommaseo (1977), pugna por uma definição de intimidade próxima da vulnerabilidade. A artista documenta o som do seu batimento cardíaco durante o encontro com os vários visitantes da galeria. O íntimo é, aqui, uma abertura a um estado de afetação, uma permissão para que o efeito dos outros corpos se prorrogue no seu. As possibilidades de definição são múltiplas. Ainda assim, urge assinalar que a intimidade existe somente porque nem tudo é íntimo. A esfera privada prevê a existência de algo que lhe é exterior: o espaço público, comum e coletivo.
Esta dialética entre interior e exterior parece culminar em Fred Sandback: Alinhavando o Espaço. Com curadoria de Lilian Tone, a exposição percorre extensivamente a obra do artista norte-americano, desde 1967 até 2003, e acompanha a consolidação da sua linguagem escultórica. Associadas ao movimento das segundas vanguardas do século XX, as construções lineares expostas são esculturas que, dentro dos limites do possível, foram destituídas do seu peso e massa. Através de hastes metálicas, cabos elásticos e fios de lã acrílica, o artista delimita o espaço e volume destas construções. O resultado são salas quase vazias, com fios que atravessam, cruzam e organizam o espaço. Esculturas monumentais que poderão ser guardadas e esquecidas num pequeno bolso. O interior e exterior destas peças toca-se e, ainda assim, tendemos a contorná-las como se de uma estrutura sólida se tratasse. Neste exercício de delimitação, Fred Sandback condensa o essencial da prática cartográfica. Porque mapear é, afinal, alinhavar o espaço. É definir e romper fronteiras – sejam elas as de uma cidade, de um edifício, da esfera privada ou de uma escultura.
Homo Urbanus. A Citymatographic Odyssey by Bêka & Lemoine está patente no MAC/CCB até 20 de abril; Hestnes Ferreira – Forma | Matéria | Luz até 13 de abril; Fred Sandback: Alinhavando o Espaço até 9 de março; e Intimidades em fuga. Em torno de Nan Goldin até 31 de agosto.
[1] Walter Benjamin em Napoli Porosa (1924).