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Reflexos sintéticos

A tecnologia nos promete maravilhas, mas não nos diz quais maravilhas operar.
Bertrand Russell[1]

Se o advento da ciência costuma ser visto como o grande impulso da modernidade, foram os instrumentos por ela desenvolvidos que permitiram-nos testar e manifestar os seus preceitos. No século XIII, Roger Bacon enaltecia esferas armilares, ímãs magnéticos e curas narcóticas para melhor compreender os processos naturais, aprimorar a vida humana, prever o futuro. De astrolábio em mãos examinou o arco-íris, não como evento divino mas fenómeno óptico, calculando a sua elevação máxima em 42 graus. Nele inspirado, Guilherme de Baskerville diz: “O plano divino um dia encompassará a ciência das máquinas, que é uma magia natural e salutar”[2]. Amante dos óculos, relógios e astrolábios, acreditava que o “saber divino era manifesto através do saber humano, que serve para transformar a natureza”. Conceitos modernos como progresso e utopia adotavam postura evangélica, crente que tais estranhos aparatos seriam os motores do reencontro cósmico onde o cientista repousaria no seio divino. Também os gregos aplicaram-se ao estudo das máquinas: cultuado foi o brônzeo autómato Talos, construído por Hefesto para proteger a ilha de Creta. É triste quando, com falsas promessas de imortalidade, os argonautas destroem-no. Sua queda é como a ruína de todo um futuro possível à esta humanidade ainda devota das possibilidades redentoras do engenho humano.

Embora comum, a relação entre Arte e Tecnologia — tema do Prémio Norberto Fernandes — sempre cultivou tensões essenciais. Contra a autoritária revolução industrial, que “requeria a cooperação de um imenso número de indivíduos organizados sob uma única direção”[3], Ruskin evocou a louvável liberdade do artesão gótico. Pois como relacionar a prática artística, bastião da subjetividade, à rigidez da indústria? Mas também foi justo um desenvolvimento tecnológico, os tubos de tinta, que permitiu aos impressionistas lançarem-se en plein air no exercício de sua autonomia. Esta sucessiva personalização dos dispositivos tanto assimilou-se à esfera íntima do indivíduo, que hoje é quase indistinta da própria anatomia humana — teria esta suposta melhoria apenas tornado o drama mais pessoal? O desenvolvimento tecnológico, longe de processo utilitário, é gesto emotivo: projetamos mecanismos que nos transformem naquilo que aspiramos ser, sabendo-o ou não. É manco, o deus da tecnologia — Hefesto constrói máquinas para sanar a sua incompletude. Toda tecnologia é uma prótese que primeiro acentua as nossas falhas. E, portanto, na exposição senti-me sobretudo como Caliban no espelho a contemplar, encantado e assombrado, as suas próprias deficiências e anseios.

Em Artificial Landscapes, as pinturas de Cristina Massena servem de modelo para as obras construídas em impressão 3D, traduzindo a inteligível linguagem da pintura num idioma incompreensível. Contemplar a sua desumana minúcia e anómalos padrões é tanto deslumbrar-se com a anunciação de um insólito amanhã quanto amargar a nossa expulsão de suas dinâmicas. Se o ideal lógico de quem somos foi nas máquinas depositado, rápido desenvolveu-se ao além de nossas capacidades. O progresso utilitário já não precisa de nossos tributos — seria o nosso destino ser adubo a outra criatura? Contemplar esta série é como testemunhar o estranho evangelho de nosso fim, onde compreende-se apenas a incompreensão.

Também Pedro Henriques, em sua série Color Cave, opera semelhante sensação. O íntimo humano evocado pela alusão à caverna adota aqui a perspectiva científica da biologia celular, matéria desprovida de aura e no entanto retratada em viés quase etéreo, sua expansão luminosa e tons radioativos sugerindo não só corantes laboratoriais mas o amedronto típico da autoanálise. Sintetiza o monstro psicanalítico à fisiologia de certos animais venenosos, realçando a estranheza presente em nossa própria constituição física. A alienação atual é aqui rebatida também no desalinho entre pintura e baixo-relevo, e a presença de botões reforça o ideal científico do humano como aparato biológico.

O Positivismo sustentou que fatos observados por cientistas enfim comporiam um armazém de informações permitindo-nos ordenar a existência. Em Limit of Disappearance, Bruno José Silva constrói uma máquina omnisciente cujos sensores captam as mais delicadas ocorrências, destruindo-se ante a presença do espectador. Não só a obra é aqui sacrificada — sobretudo os espectadores, cuja experiência é restringida pela curiosidade do anterior, criando um inevitável empobrecer existencial que atrofia as nossas capacidades. Tal debilidade mental enfim nos impedirá de compreender as consequências de nossos atos, de facto o próprio impacto desta obra: impotentes contemplamos o arcano legado da perturbação gerada pela nossa simples existência, o corrimento de petróleo viscoso como um grotesco relógio a acompanhar nosso desmedido extrativismo.

Se José Silva personaliza a sua crítica ao suposto progresso moderno em Sentiment Data Painting, Rudolfo Quintas – artista e projeto vencedor do Prémio – dissemina-a ao coletivo: o fluxo cromático de sua obra resulta da interpretação que uma IA faz das notícias correntes, se boas ou ruins. Ao invés de clareza sobre nosso estado psíquico, desperta antes a turbulência da lógica informativa — a relação entre indivíduo e sociedade não opera sob pólos morais absolutos, mas é atravessada por uma complexa psicologia que nem sempre sofre com as catástrofes alheias, muito pelo contrário — sua tradução artística sempre exigirá grandes esforços. Também seu veloz câmbio de notícias mostra como a aparente disponibilidade de informação alimenta, paradoxalmente, a ausência de conhecimento. O excesso de estímulos impede a correta reflexão, banaliza a sua gravidade e gera impotência. A modernidade apostou no domínio humano sobre o real, mas é a indiferença o ápice do sujeito bem informado que, vencido pela inexorável marcha da história, é por suas marés atravessado.

O contraste entre dinamismo e inércia é também explorado pela dupla LealVeileby, que subverte o formato propagandista das redes sociais ao criar vídeos curtos em loop que não prescrevem significados óbvios. Sua atmosfera de assombroso absurdismo e o caráter cíclico de sua narrativa operam um tipo de hipnose de expectativas frustradas — o espectador educado pela cultura da comunicação antecipa um desenlace revelatório que jamais manifesta-se, vindo enfim talvez a aceitar a impactante estranheza presente nos momentos mais corriqueiros.

O tempo é também trabalhado por Dalila Gonçalves, cuja obra Sinfonia a Vapor – distinguida com Menção Honrosa – emprega o primeiro combustível da modernidade não para fins utilitários — cada chaleira canta em timbre próprio evocativo do animal em cobre colado à ponta de seus ondulantes bicos, como levianos exemplares de espécies extintas pelos próprios elementos presentes na obra: o desperdício da água, o calor do aquecimento global, a metálica imposição industrial, o efeito estufa dos gases atmosféricos. Seria de facto uma sinfonia ou um urro coletivo de torturadas criaturas já incapazes de articular a perdida harmonia natural? Mais que prática imaginativa, tal cronómetro é um exercício de suspense onde antecipamos um fim certeiro, embora indatável. Mais efetivo ter articulado tais temas num estilo inocente, comentando talvez a nossa ingenuidade atual.

Until the Last Drop, de Inês Norton, articula semelhantes temáticas. De paradigma tecnológico mais recente, ironiza um futuro desprovido de recursos naturais, onde é necessário simular água num procedimento incapaz de omitir os seus truques. Seu pseudo-oceano é contido num sedoso ecrã cuja arcaica mecânica simula seus movimentos e perturba seu descanso, numa crescente dissonância sonora. O tato sugerido apenas reforça a ilusão: já não há profundidade no oceano que outrora mistérios guardou mas que agora contém apenas artifícios, como a pobreza de um mundo cuja tecnologia trocou o insulto do estranho pelo conforto do familiar. Transforma-se, enfim, numa tumba, ritualizando o fim daquilo há muito perdido, como se o luto atrasado fosse redenção necessária a quem já não tem o que perder, nem ganhar.

Se a tecnologia é nítida em Inês Norton, Gabriel Abrantes oculta o seu tributo ao pintar em óleo imagens criadas mediante softwares — seu aspecto final não promove nenhuma qualidade apenas acessível a técnicas virtuais. Seria o próprio tédio desértico o que encurva as suas criaturas? Em diversas cosmogonias o dilúvio é limiar absoluto entre o fim e o começo, intervalo habitado por deuses e fantasmas que lamentam a catástrofe passada. Arantes realça tal aridez na cruel gentileza de um sol que não cessa seu crepúsculo (aurora?) e pela delicadeza dos instrumentos mais afeitos a adornos inúteis que melodias consoladoras.

Já em Time Lapse, Daniel Nave promove uma tecnologia que ainda retém um otimista senso de encanto. A ciência e a tecnologia foram vistas como os impulsos da globalização dos costumes, enfim, da comunhão psíquica: Nave desmaterializa metrópoles construídas no International Style, numa iridescência que impõe-nos uma miopia que é o primeiro estágio do deslumbre. Seu cubo faturado de bastões é caixa mágica semelhante à arquitetura dos primeiros computadores, em cujos circuitos internos Campbell encontrou “toda uma hierarquia de anjos… Aqueles pequenos tubos são milagres”[4]. A verticalidade dos bastões e a profundidade de sua união convergem o transcendente e o imanente, como também sonhou a cristalina cidade moderna, herdeira sacrílega do paraíso terreno inaugurado pelas catedrais góticas.

Em Ilhéu, também Carlos Mensil conserva o otimismo científico ao reivindicar a tecnologia como auxílio do entendimento. A Física costuma empregar certos auxílios visuais como cordas, laços, ondas e véus na tentativa de sanar a nossa dificuldade em visualizar tão sofisticadas interações matéricas. “Quando trata-se de átomos”, disse Niels Bohr, “a linguagem pode apenas ser usada como poesia”[5]. As sucessivamente paradoxais e contraintuitivas teorias científicas necessitam da arte, não para ilustrar os fenómenos, mas justo para compreendê-los. Ilhéu, portanto, articula o seu panorama conceitual da teoria dos laços, desejosa de unificar a relatividade geral com a mecânica quântica. Seu distorcido tecido transparente formula a teoria gravitacional de Einstein, e seu evocativo mecanismo central tanto a simultaneidade quanto a expansão ondulante da física quântica.

A mostra Arte e Tecnologia, com os finalistas do Prémio Norberto Fernandes, está patente no Núcleo Fundação Portuguesa das Comunicações até o dia 28 de novembro. 

 

[1] Id., (2004). History of Western Philosophy. New York: Routledge, p. 455.
[2] Eco, Umberto. (1986). The Name of the Rose. California: Warner, p. 14.
[3] Russell, Bertrand. (2004). History of Western Philosophy. New York: Routledge, p. 455.
[4] Campbell, Joseph. (1990) O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, p. 21.
[5] Heisenberg, Werner. (1971) Physics And Beyond, New York: Harper & Row, p. 41.

Tomas Camillis é autor e pesquisador baseado em Lisboa. Escreve narrativas fictícias e ensaios no contacto entre arte, filosofia e literatura. Possui mestrado em Teoria da Arte pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Nos últimos anos participou de pesquisas, lecionou cursos em institutos culturais, auxiliou na organização de simpósios e publicou em revistas especializadas. Atualmente colabora com o Serviço Educativo do MAC/CCB e com a revista Umbigo.

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