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Superfície Desordem de Jonathan Uliel Saldanha, Febre da Selva Elétrica de Vivian Caccuri e Assim no céu como na terra de Rita Caldo na Galeria Municipal do Porto

Na Galeria Municipal do Porto (GMP) estão patentes três exposições: Superfície Desordem de Jonathan Uliel Saldanha, Febre da Selva Elétrica de Vivian Caccuri e Assim no céu como na terra de Rita Caldo. Projetos expositivos que revelam um novo ciclo programático da instituição, através da direção artística de João Laia. Temáticas ligadas à ecologia, às novas tecnologias avançadas, como a Inteligência Artificial, e ao pós-humanismo, são traços comuns de todas as propostas. Criações que envolvem instalações e atmosferas imersivas, realçando a perceção háptica e sensorial em detrimento da perspetiva ocularcêntrica e renascentista. Do mesmo modo, é dado relevo aos ambientes sonoros, à música e às artes performativas, como forma de englobar todas as expressões e práticas artísticas contemporâneas.

Superfície Desordem de Jonathan Uliel Saldanha, com curadoria de João Laia, confronta-nos com a contemporaneidade, partindo do pressuposto de que o medo que a sociedade ocidental sente é potenciador de monstros. Entidades desconhecidas, que tanto residem em cada um de nós como se materializam em tudo o que é estranho, como a Inteligência Artificial, outros seres humanos ou não humanos. Tudo converge para o vórtice da ansiedade: a degradação dos ecossistemas, a legitimação de ideologias opressoras, a ampliação de conflitos armados, ou a implementação e dominação de sistemas tecnológicos avançados.

Jonathan Uliel Saldanha, no Piso 0 da GMP, cria um ambiente instalativo obscuro, labiríntico e sinistro, povoado por monstros, porém potenciando a efabulação de mundos mais luminosos. Segundo as palavras de Laia, no texto curatorial: «Os monstros que habitam o universo crepuscular de Jonathan Uliel Saldanha consubstanciam-se como possibilidades empáticas de habitar o mundo, nas quais se reconhecem os fossos e armadilhas do momento presente na sua relação com dinâmicas passadas, mas onde, em simultâneo, outras formas de ser e estar se tornam possíveis e se abrem à nossa frente».

Em Superfície Desordem entramos num mundo de ficção científica onde encontramos corpos bizarros e mutantes. Arcanjos Capital, ou Anjos Kawasaki Antropomórficos criadas através da desconstrução de uma moto, são figuras híbridas de superfície refletora, ampliadas por feixes de luzes coloridos. Noutro sentido, a instalação Sistema-L Ovo Camuflagem convida a entrar numa espécie de gruta, composta por vegetação, luzes ofuscantes e chão refletor, como se estivéssemos a ser engolidos por um corpo estranho, expandindo-se como um fungo.

O ponto nevrálgico de Superfície Desordem é a Torre do Basilisco (2024). Uma estrutura operada por um mecanismo de seleção de Inteligência Artificial, que coordena duas peças em exposição. Campo de Vídeo Aglomerado, um ecrã-tríptico em que podem ser visionados vídeos do artista, e Diálogo Vírus-Lobo (2024), dois ecrãs onde seres artificiais, um lobo e o vírus da raiva, se seduzem através de um diálogo gerado por Inteligência Artificial.

Finalmente, Glaciar do Futuro (2024) assemelha-se à aparição de uma montanha coberta de gelo. Feita em tecido, é uma presença imponente mas simultaneamente leve e oscilante. Talvez relembrando que, por agora, os glaciares ainda fazem parte do nosso ecossistema, mas que no futuro terão de ser imaginados. Um vislumbre dos mundos possíveis de serem idealizados, face à volatilidade e às inseguranças da contemporaneidade.

Febre da Selva Elétrica de Vivian Caccuri, com curadoria de Bernardo José de Souza, incita a ouvir, a sentirmos o zumbido de mosquitos a voarem pelas florestas tropicais e cidades informes e caóticas, muitas vezes deixando-nos num estado febril. Uma febre que nos extenua com calores delirantes, que nos estonteia e inebria perante a realidade, mas também remetendo para a História. A dos corpos escravizados e dos colonizadores nos navios negreiros, rumando do continente africano para o americano, levando consigo também mosquitos, e com eles uma série de doenças febris.

O curador, na folha de sala, realça a importância do som para Caccuri, enquanto cerne da investigação estética e política da artista: «O som como elemento central à vida, seja como forma de comunicação entre espécies, seja como linguagem, tal qual a música, manifestação artística que mobiliza a humanidade, quer em suas experiências ritualísticas, quer em suas expressões hedonistas».

Febre da Selva Elétrica, no Piso 1 da GMP, envolve-nos numa atmosfera febril. Em Gatonet-Mor (2024), Caccuri transforma elementos tecnológicos, como cabos elétricos, colunas de som, blocos maciços de cimento e computadores, em formas selváticas emanando sons de mosquitos. Corpo sonoro composto por sons provenientes de um arquivo científico brasileiro e por sons produzidos por Inteligência Artificial. Por outro lado, a artista brasileira, em Skin Shield (2024), Fantasia da Ordem (2024) e Fantasma Poeira (2018), gera contrastes, pela delicadeza, leveza e transparência das redes mosquiteiras, escudos contra os insetos – usadas pelos colonizadores nas suas incursões pelas florestas tropicais – adornadas a bordados, com reproduções de ondas sonoras dos animais zumbidores, teclas de piano, ou bandas sonoras. Enfatizando a relevância da audição e da experiência háptica, face à visão e à perspetiva ocularcêntrica.

Caccuri entrelaça antagonismos, como cultura e natureza, concebe relações entre humanidade e mosquitos, potencia ligações transnacionais, funde conexões entre vários ideários. Fios condutores de eletricidade ou cabos de rede de internet em forma rizomática, potenciando outras raízes e ramificações, outras sonoridades e modos de entender e sentir o mundo.

Assim no céu como na terra de Rita Caldo, com curadoria de Patrícia Coelho, inaugura um novo espaço da GMP, no Piso-1, com o foco em projetos expositivos de artistas em estreia no contexto institucional.

A jovem artista portuense apresenta um ambiente instalativo etéreo, vibrante e mágico, como se fosse um sonho pontuado por personagens quiméricas, provenientes de fábulas, de espetáculos circenses ou de feiras de variedades. Figuras elaboradas através do recurso à modelação e pintura de cerâmica fria, à costura, ao bordado, ou ao macramé. Máscaras, esculturas e distorções figurativas que contam histórias, que se vão desenlaçando no espaço cenografado. Cada peça tem uma narrativa, sem princípio, meio ou fim. Rasgos alucinantes, pensamentos ou devaneios de uma certa ironia e comicidade, delineando um imaginário flutuante. Segundo a curadora no texto que acompanha a exposição, «Rita Caldo reflete sobre o abismo da linguagem que existe entre o mundo que conhecemos e o que fantasiamos. Talvez, por isso, o desejo de transcender e encontrar no cosmos um lugar de libertação seja uma constante em toda a exposição».

O próprio título da mostra remete para algo límbico, para um lugar entre dois estados de consciência, algo extradimensional, como o “quarto vermelho” de Twin Peaks (1992), de David Lynch. Entre o celestial e o terreno, o inconsciente e o consciente, o sonho e a realidade. Contudo, possibilitando o cruzamento entre ambos, na possibilidade de as nossas fantasias se concretizarem.

Em Assim no céu como na terra, as questões sobre a dualidade vão para além do espaço, encontrando-se também na auto-escultura Rita (2019) ou nas esculturas-corpo Arrozinho, Arrozeiro(s) (2022). Nestas peças, há um senso de metamorfose, um questionamento acerca da identidade, e de que nada está velado ou estanque. Por outro lado, Preciosos (2024), com corpo sonoro realizado em colaboração com António Feteira, é uma peça em forma de caixa de música movida por pequenas figuras jocosas, sonorizando o entorno, potenciando ainda mais a cenografia fantasiosa. Por último, a peça exterior, Nas nuvens (2024), leva um pouco do imaginário de Rita para o pátio da galeria, lembrando que a utopia é sempre possível.

Superfície Desordem está patente até 16 de fevereiro de 2025 na Galeria Municipal do Porto. Na segunda metade do ano, irá ser exibida em Lisboa, no contexto da parceria com as Galerias Municipais da cidade. Febre da Selva Elétrica está patente até 23 de março de 2025 e Assim no céu como na terra até 2 de março de 2025.

Ana Martins (Porto, 1990) é investigadora doutoranda do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2022.12105.BD). Frequenta o Doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, tendo concluído o Mestrado em Estudos de Arte – Estudos Museológicos e Curadoriais pela mesma instituição. Licenciada em Cinema pela ESTC do IPL e em Gestão do Património pela ESE do IPP. Foi investigadora no Projeto CHIC – Cooperative Holistic view on Internet Content apoiando na integração de filmes de artista no Plano Nacional de Cinema e na criação de conteúdos para o Catálogo Online de Filmes e Vídeos de Artistas Portugueses da FBAUP. Atualmente, desenvolve o seu projeto de investigação: Arte Cinemática: Instalação e Imagens em Movimento em Portugal (1990-2010), procedendo ao trabalho iniciado em O Cinema Exposto – Entre a Galeria e o Museu: Exposições de Realizadores Portugueses (2001-2020), propondo contribuir para o estudo da instalação com imagens em movimento em Portugal, perspetivando a transferência e incorporação específica de elementos estruturais do cinema nas artes visuais.

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